terça-feira, 31 de janeiro de 2012

No dia em que Nuno Teotónio Pereira faz 90 anos


«Estou velho, estou a chegar aos 90 anos. Há órgãos que me estão a falhar. Um deles é a memória, que se está a desfazer como pó, o que me causa um certo sofrimento. (…) Além da perda da visão. Estou emocionado, mas estou muito contente, porque esta sessão, tendo sido anunciada como de homenagem à minha pessoa e não deixando de o ser, fez também justiça a todos aqueles que eu conheci na luta contra a ditadura, naqueles anos difíceis. (…) Os dias de hoje, e porventura os de amanhã, vão exigir acções múltiplas, fortes, convictas, e por vezes decisivas, para que o mundo seja melhor para todos (…) – Disse na sessão de homenagem que um grupo de amigos lhe prestou há cerca de um ano.

Nuno Teotónio Pereira é um dos três únicos sócios honorários do NAM.

Foi fundador do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória e aqui batalhou com ideias, propostas e acção, enquanto não lhe faltaram as forças físicas. A luta contra a Ditadura fascista deve-lhe muito. Portugal também. Extraordinário arquitecto, foi pioneiro na história da arquitectura contemporânea portuguesa. É um exemplo de cidadania persistente e de democrata dialogante e com abertura de espírito.

No dia em que faz 90 anos, a Direcção do NAM presta-lhe novamente homenagem, e agradece à nossa amiga Joana Lopes o texto que transcrevemos.

A Direcção do NAM

30 de Janeiro de 2012

Nasceu em 30 de Janeiro de 1922, numa família burguesa, monárquica, católica e afecta ao salazarismo, facto que viria a marcá-lo profundamente na primeira parte da vida.
Arquitecto de mérito reconhecidíssimo, mestre de gerações que com ele colaboraram num quase mítico atelier de Lisboa, publicamente louvado e premiado em sessenta anos de actividade profissional dedicada à «arquitectura e cidadania»; a partir do fim dos anos 50, também militante incansável na oposição à ditadura, preso mais do que uma vez pela PIDE, torturado e libertado de Caxias no dia seguinte à revolução de Abril – é esta a pessoa de Nuno Teotónio Pereira, que importa hoje referir, embora muito resumidamente, sobretudo para os mais novos e para os que não se cruzaram com ele na sua longa vida.

O seu percurso foi muito especial e pouco comum. Com 14 anos, viveu entusiasticamente a criação da Mocidade Portuguesa, nela fez uma carreira fulgurante, envergou orgulhosamente a farda em desfiles na Avenida da Liberdade e não evitou a saudação fascista – faz questão de não o esconder. Nesse mesmo ano de 1936, seguiu apaixonadamente o avanço das tropas franquistas no início da Guerra Civil de Espanha e envolveu-se na organização de uma grande coluna de camiões que levou até Sevilha mantimentos para as mesmas.

A grande viragem sem retorno começou durante a II Guerra Mundial, por influência do pai, profundamente anglófilo, mas viria a concretizar-se, decisivamente, durante a campanha de Humberto Delgado, em 1958. Não só por todo o ambiente criado em torno desta, mas também por uma grande influência de sua mulher Natália e de Francisco Lino Neto, a quem Nuno Teotónio Pereira afirma ter ficado a dever a sua «conversão». E é já com entusiasmo que segue a vitória de Fidel de Castro, em Cuba, em 1959…

A partir de então, e até ao fim da ditadura, foram anos de uma militância intensíssima, sobretudo nos diversos campos de actividade dos que vieram a ser designados como «católicos progressistas». Desde os primeiros anos da década de 60 e até ao 25 de Abril, a oposição dos católicos ao regime político e à guerra colonial, e a revolta crescente que manifestaram em relação às posições oficiais da Igreja portuguesa, deram origem a plataformas de luta que adoptaram estruturas diversas, mais ou menos maleáveis conforme os casos, mas que envolveram, directa ou indirectamente, milhares de pessoas. Nessa teia de iniciativas e instituições, houve quem tivesse um papel especial na dinamização e agilização de contactos e na concretização de acções conjuntas. Vários nomes podiam ser citados, mas, se fosse necessário escolher apenas um, seria sem dúvida o de Nuno Teotónio Pereira. Com a sua simplicidade desconcertante, tenacidade férrea e pragmatismo à prova de fogo, deitava as sementes, estabelecia todas as pontes possíveis e acompanhava detalhadamente as realizações.

Qualquer lista de iniciativas peca por (grande) defeito, mas citem-se, a título de meros exemplos, a criação do primeiro jornal clandestino que difundiu notícias sobre a guerra colonial (Direito à Informação, 1963), a fundação da cooperativa Pragma (1964), o papel preponderante nas vigílias pela paz (igreja de S. Domingos, 1969, e capela do Rato, 1972), os cadernos GEDOC (1969), a participação na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (1970), o Boletim Anti-Colonial (1972). E muitas, muitas outras realizações que, sem ele, nunca teriam existido ou ficariam aquém da amplitude que tiveram.

Em finais de 1973, foi preso pela última vez, durissimamente torturado pela PIDE e só o 25 de Abril o restituiu à liberdade. Foi depois um dos fundadores do MES, nele se manteve até à sua extinção e nunca deixou de ter, desde então, uma participação cívica muito activa, nomeadamente a nível da cidade de Lisboa.

Há pouco menos de três anos, a vida deu-lhe um golpe cruel: cegou, mais ou menos repentinamente. Mas continuou preocupado com tudo e com todos.

Há cerca de um ano, a pretexto do lançamento de um livro sobre uma cooperativa lançada no Porto nos anos 60 (a Confronto), um grupo de amigos decidiu prestar-lhe uma espécie de homenagem e foi sem surpresa que viram encher-se um auditório com várias centenas de pessoas. Para todas elas, o Nuno foi – e é – uma referência, um marco de vida e objecto de uma enorme gratidão.

A encerrar a referida sessão afirmou: «Estou velho, estou a chegar aos 90 anos. Há órgãos que me estão a falhar. Um deles é a memória, que se está a desfazer como pó, o que me causa um certo sofrimento. (…) Além da perda da visão. Estou emocionado, mas estou muito contente, porque esta sessão, tendo sido anunciada como de homenagem à minha pessoa e não deixando de o ser, fez também justiça a todos aqueles que eu conheci na luta contra a ditadura, naqueles anos difíceis. (…) Os dias de hoje, e porventura os de amanhã, vão exigir acções múltiplas, fortes, convictas. e por vezes decisivas, para que o mundo seja melhor para todos. (…) Muito obrigado.»

Joana Lopes

30 de Janeiro de 2012

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

CARTA DO COLEGIO DE NEFROLOGIA AO DIRECTOR DA SIC-NOTICIAS

ORDEM DOS MÉDICOS


Colégio da Especialidade de Nefrologia

Exmo. Senhor

Dr. António José Teixeira

Director da SIC-Notícias

Enviado por correio electrónico

Lisboa, 12-01-2012

Assunto: Programa ContraCorrente de 10-01-2012 - Racionamento dos cuidados de saúde - Hemodiálise crónica em doentes com idade superior a 70 anos

Senhor Director,

No programa ContraCorrente do dia 10 transacto, que contou com a participação de cinco ilustres opinion makers, foram produzidas afirmações e assumidas posições que, pelo seu provável impacto na opinião pública, não podem ser deixadas sem contraditório.

Sendo reconhecida a superior craveira intelectual dos intervenientes, essas posições só podem ser justificadas, no mínimo, por uma indesculpável leviandade na abordagem a um tema de particular relevância como é o acesso dos cidadãos a cuidados de saúde.

Com efeito, na continuação de uma sugestão de Sobrinho Simões (SS) para que fossem introduzidas medidas de ,,racionamento" no Serviço Nacional de Saúde (SNS) - embora as medidas que invocou fossem de ,,racionalização" e não de ,,racionamento" -, António Barreto (AB) pegou entusiasticamente no tema e defendeu que não fazia sentido o Estado suportar tratamentos onerosos em doentes idosos, referindo como exemplo o tratamento hemodialítico em pessoas com mais de 70 anos.

De imediato, Manuela Ferreira Leite (MFL) corroborou a posição de AB, ressalvando as situações em que os doentes pagassem o seu tratamento, justificando que, sem a introdução de medidas de ,,racionamento", a qualidade dos cuidados prestados pelo SNS se deterioraria.

Pinto Balsemão (PB) reforçou a posição dos dois anteriores intervenientes, afirmando que, quanto mais tarde fossem implementadas essas restrições, pior seria.

Face ao descrito, o Colégio de Nefrologia da Ordem dos Médicos vê-se na contingência de esclarecer o seguinte:

1. Dos cerca de 10.000 doentes em hemodiálise crónica em Portugal no final de 2009, mais de 50% tinham idade superior a 65 anos. No ano de 2010, iniciaram tratamento 2.500 doentes, 60% dos quais se encontravam nessa faixa etária.

2. Não há dados disponíveis relativos ao grupo etário superior a 70 anos. Contudo, face aos dados atrás referidos, não erraremos muito (e se errarmos será por defeito) ao afirmar que, no início de 2010, se encontravam em hemodiálise regular perto de 2.500 doentes com mais de 70 anos de idade e que, no decorrer desse ano, iniciaram tratamento outros 800.

3. Em poucos minutos e em "julgamento sumário", foram ali "condenados" à morte perto de 3.300 cidadãos cuja única "culpa" é a de terem mais de 70 anos de idade e sofrerem de insuficiência renal. E de nada teriam servido os argumentos de que descontaram para a "segurança social" durante toda uma vida de trabalho, que a condenação tinha como única intenção proteger a ,,população activa" que ainda não prestara contribuição equivalente à que eles já haviam prestado e que essa condenação contrariava os apregoados fundamentos de um Estado social e de uma Sociedade solidária. E mais: que a sentença proferida feria gravemente disposições da própria Constituição da República Portuguesa onde expressamente se afirma que todos têm direito à protecção da saúde e que incumbe prioritariamente ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina, com particular destaque para a protecção da infância, da juventude e da velhice. Nem sequer seriam colhidos como bons e decisivos os seguintes argumentos: Primeiro, que é contraditório, por um lado o júri congratular-se com o aumento de esperança de vida da população resultante dos avanços médicos e, por outro lado, negar aos idosos a possibilidade de recorrerem a técnicas terapêuticas tornadas acessíveis por esses avanços; Segundo, não se entende que, para preservar a qualidade do SNS, se recorra à recusa arbitrária de acesso de um grupo etário a determinados tratamentos. Não seria isso a mais flagrante falência do SNS e a negação da sua essência?

4. MFL, sensível à argumentação apresentada, condescenderia em facultar o tratamento aos idosos que o pagassem. A defesa, de imediato, teria questionado o emérito júri se tinha conhecimento sobre o custo do tratamento - que é de € 24.400 por ano. Se sabia que apenas 27% dos agregados familiares apresentam um rendimento bruto anual superior a € 27.500 (PorData) e que, portanto, seria presumível que apenas 900 desses doentes pertencessem a famílias com hipotética capacidade económica para assegurar o tratamento e, mesmo assim, à custa de enormes e insuportáveis sacrifícios para o agregado - abrangendo a alimentação, a educação, a residência, a higiene, o vestuário, etc., etc..

5. Faltou, ainda, ao ilustríssimo júri ouvir quem sabe sobre o assunto. Qualquer dos muitos nefrologistas com experiência feita de vários anos de prática e do seguimento de alguns milhares de doentes em hemodiálise o teria esclarecido que a qualidade e a esperança de vida nos doentes com idade superior a 70 anos que iniciam ou se encontram em hemodiálise justificam plenamente, na esmagadora maioria dos casos, o seu tratamento. Tê-lo-ia, ainda, esclarecido que aqueles dois parâmetros - qualidade e quantidade de vida expectáveis - são sempre ponderados para que, face a cada doente com sua específica situação clínica e em seu benefício, se tome a decisão de propor, ou não, determinada terapêutica, designadamente as que se revestem de relevante risco, de potencial sofrimento e que são onerosas, como é o caso da hemodiálise. Esta atitude é sistemática, não sendo a idade do doente mais do que um mero (e, geralmente dos menos relevantes) aspectos a serem considerados para a tomada de decisão.

6. É, assim, por razões de carácter técnico, ético-profissional e ético-social, bem como na prossecução do espírito e da letra de nobres e fundamentais princípios enunciados da nossa Constituição, que nos opomos à implementação de medidas de ,,racionamento" na saúde, designadamente às que recorram à idade como critério decisório.

7. E opor-nos-emos enquanto houver tanto por fazer em termos de ,,racionalização" na saúde e, sobretudo, enquanto houver tanto por fazer em termos de ,,racionalização" e, até, de ,,racionamento" em áreas em que o empenhamento do Estado não seja, como o é para a saúde, prioritário.

8. Solicitamos, pelos motivos apresentados, que o assunto seja objecto de nova apreciação no programa ContraCorrente, apelando aos intervenientes que não nos proponham uma sociedade geronticida.

Com os melhores cumprimentos,

Pel'O Conselho Directivo

do Colégio de Especialidade de Nefrologia da Ordem dos Médicos

O Presidente
João Ribeiro dos Santos
AGUARDEMOS ESTE DEBATE SOBRE UM TEMA TÃO IMPORTANTE