AR e LUZ
Assim como de uma só semente se pode
fazer uma grande floresta, também de um só germe se pode fazer uma grande
epidemia - John Tyndall
As
imagens televisivas, em tempos de pandemia, de funcionários a desinfetarem
ruas, casas, praias, além da montagem de dispositivos (1) para pulverizarem
todo o corpo dos funcionários à entrada dos
locais de trabalho, levou-me a ir ao fundo do meu baú das memórias retirar um
livro de 1896: "A Desinfecção
Pública em Lisboa, por Guilherme José Ennes, director
do Posto de Desinfecção e Socio da Academia Real das Sciencias”.
Assistia-se,
nestes finais do seculo XIX, ao amanhecer da moderna medicina com figuras como
Pasteur, Koch, Lister e Roux.
O
relatório de G.J. Ennes sobre a desinfeção pública de Lisboa, apresentado a
João Ferreira Franco Pinto Castello Branco, então ministro
e secretário de estado dos Negócios do Reino, que ficou conhecido na história
por João Franco, é uma obra com 231 páginas que descreve minuciosa e pormenorizadamente
toda a estratégia e táctica adotada, terminando com um anexo com os mapas de
despesa desde 2 de Maio de 1894 a 30 de Junho de 1895, que faz inveja a muitos
relatórios do nosso tempo.
A
sua leitura, apesar de se terem passados 124 anos, é de todo o interesse neste
contexto da pandemia que nos assola.
O
livro/relatório começa com uma carta extensa a João Franco explicando a
necessidade da criação de um posto e unidades móveis de desinfeção na cidade de
Lisboa e do Porto para combater uma epidemia de cólera.
Guilherme
Enes inicia assim a carta: "O enorme
movimento scientífico, que teve por ponto de partida os trabalhos de Pasteur, e
que a todos nos empuxou para a ideia e para a comprehensão dos infinitamente pequenos, avocou as
attenções geraes para esta nova sciencia da desinfecção que, como não podia
deixar de ser, se tornou um modo certo de augmentar as nossas forças
therapeuticas".
Não
sei se João Franco teria algum conhecimento de saúde pública ou das querelas
existentes entre a medicina velha e a medicina nova, o facto é que autorizou a
construção do Posto de Desinfeção Pública de Lisboa e a prática de desinfeções
ao domicílio.
Antes,
porém, G.J.Enes escreve: " Em 1892 o
cholera que lavrava no meio dia da França, e que invadira a Hespanha pelo
norte, manifestando-se alguns casos na Byscaia, obrigou a adoptarem-se medidas
extraordinárias de saúde pública contra a ameaça de uma possivel invasão".
"Organizara-se a defeza da fronteira nos
pontos interessados pelos caminhos de ferro (2) , estabelecendo-se o serviço de desinfecção pelo vapor humido sob pressão, e pensou-se em
augmentar os meios de defesa em Lisboa e no Porto, ordenando e systematisando aquelle serviço e munindo igualmente as duas
cidades com os aparelhos Geneste e Herscher , como instrumentos poderosos para se conseguir a efficacia do trabalho
no caso de se realizar a invasão presumida". (3)
Como
a epidemia parecia estar controlada no país vizinho houve mais tempo para a
construção do Posto de Desinfeção de Lisboa.
Depois
de uma saga, ainda habitual nos nossos tempos, de sucessivas recusas a ceder um
terreno para a construção do dito Posto, desde a Câmara, o Instituto Industrial
e a cerca do convento de Santa Joana, o problema só foi desbloqueado quando João
Franco assume a chefia do governo (4). Altura em que determinou a posse da
propriedade do terreno do extinto convento das Francesinhas.
"Estava, pois, vencida a principal
difficuldade, atacada em 14 de outubro de 1892, isto é, consumidos duzentos
cincoenta e cinco dias em um negocio tão util, tão simples e, apparentemente,
de tão facil resolução; e sabe Deus quanto mais o seriam, se não fôra o
ministro actual havel-o tomado a peito, tratando-o pessoalmente."
Como eu reconheço este nosso país !!
A
construção do Posto obedeceu aos seguintes critérios, assim descritos:"(…) assentar em bases duradoiras e
adaptar a desinfecção official a um typo singelo, economico e efficaz, a
precisão de submetter a inconstância e instabilidade da opinião pública n'estas
materias para não regatear o preço da
desinfecção (…) como não regateia o dos serviços dos incendios, pois que o fogo destroe-lhe os haveres, e as doenças
contagiosas destroem-lhe a familia". Ao mesmo tempo o responsável pela desinfeção
em Lisboa tinha que educar todo o pessoal e particularmente os desinfectores
porque as epidemias não esperam.
O
relatório refere, com toda a justeza, o auxílio valiosíssimo do engenheiro do
Posto, António Jorge Freire, e retrata a visão de um trabalho de equipa, com
esta citação: "E, se é uso dizer-se
que em construções sanitárias o medico é a cabeça (…) e o engenheiro o braço(…)
a verdade manda dizer que não foi assim no caso presente, e que a expressiva
phrase franceza: deux têtes dans le même
bonnet, é a que melhor se aplica" (6)
O
edifício foi construído num recinto fechado e isolado das habitações
particulares. Situado "no centro de
gravidade da população de Lisboa e confinado com o bairro populoso e pobre da
Esperança (…) um logar no centro de população densa em taes condições era tudo
quanto podia desejar-se para o estabelecimento de um Posto de desinfecção
publica (…). E convencido estamos de que, em nenhuma cidade da Europa, (…) se
encontram estes em condições iguais".
Para
a redução de custos, problema constante do nosso país, o que estava previsto no
plano geral para três edifícios foi restringido a um edifício (depósito de
desinfetantes e arrecadação, cocheira, administração, residência do empregado,
cavalariça).
Conseguiu-se
uma separação entre zona limpa e suja, assim como desligada das habitações
próximas. Cito: "Os principios
gerais a que deviam subordinar-se todas as obras eram: casas amplas, cheias de
luz, ventilação cruzada e circulação constante de ar. Ar e luz! Eis os dois poderosíssimos agentes microbicidas que
queriamos ter sempre à nossa disposição, na lucta diaria contra os elementos
morbigenos".
Relativamente
à descrição do fardamento do desinfectador (nova profissão criada), - ver
desenho - realço um pormenor, a protecção respiratória, que não figura no
desenho, era uma máscara de esgrima, forrada com uma fina camada de algodão que
se queimava sempre depois das operações de desinfeção.
Foi
uma invenção lusa com a vantagem sobre o respirador alemão de cobrir toda a
face e cabeça. O arquétipo da nossa atual e profusamente fabricada viseira de proteção.
Todo
este processo de desinfeção no Posto ou no domicilio estava suportado por uma
"boa lei de desinfecção obrigatória, popular e viavel, porque
põe em coalisão interesses scientificos e sociais, e habitos arreigados, não é
um problema fácil” e a nossa "(…) é reconhecidamente a melhor lei de
desinfecção obrigatoria que existe na Europa".
Ainda
hoje se continua a colocar o problema das liberdades individuais com que na
altura se confrontava a saúde pública. Dou a palavra ao Dr Chautemps,
conselheiro municipal de Paris, que a propósito do isolamento dos doentes
contagiosos, que o relator desta obra cita: "Si libéral que nous soyons, il est une liberté pour laquelle nous avons
ne nous sentir aucune tendresse, c'est la liberté de répandre la mort autour
de soi”.
"No periodo a que se refere este
trabalho, desinfectaram-se no Posto 154.395 peças de roupa e 1.563 artigos
funerarios, e praticaram-se 866 desinfecções domiciliaries”. A doença só se
repetiu apenas num caso, e nenhum empregado ou familiar contraiu
a doença.
Depois
de vários considerandos sobre os produtos existentes para desinfeção, para os
quais o pessoal do Posto estava preparado, que iam desde o miolo de pão,
aplicado em casa ricas cujas paredes eram forradas a papel, ou em outra "guarnição rica" - operação morosa e muito delicada - até à creolina.
Com
o miolo de pão húmido, sem estar muito duro ou mole, procedia-se à fricção,
reunindo por meio de vassoura húmida e sem levantar poeira as migalhas que caíam
no chão, e queimando-as no fim da operação.
O
professor Ziemssens viu uma vez serem precisos 15 dias para desinfetar uma sala
grande. Assim, rapidamente, substituiu a vassoura por uma esponja fina,
contrariando a opinião dos seus colegas alemães.(6)
Voltando
ao nosso burgo, aqui optou-se pela desinfeção sulfurosa por ser um processo
económico e prático, segundo o nosso relator. Para tal tinha de se criar uma
câmara sulfurosa (soufrière) numa
casa, coisa bem simples segundo a opinião
de G.J. Enes.(7)
"Uma casa qualquer, sem janellas,
calafetada de modo que o seu ambiente não possa comunicar com o ar exterior,
com uma porta só que una completamente, e com uma abertura ou chaminé de tiragem no tecto que se possa
cerrar hermeticamente, quando convenha, e abrir a seu tempo para despejo de
gaz, está logo convertida n'uma excellente soufrière".
Segundo
uma lei de 28 de abril de 1894, era
obrigatória a desinfecção nas seguintes doenças contagiosas:
Cholera e doenças choleriformes, febre
amarella, peste, variola e varioloide, escarlatina, febre miliar, diphteria (croup
e angina diphterica), febre typhoide, typho exanthematico, dysenteria epidemica,
infecção puerperal (quando não seja exigido o segredo por motivo de gravidez) e
por último Tuberculose.
“(…) porque
o passado não está todo inevitavelmente morto, (...) porque o progresso é uma
evolução e não deve ser revolução (…)". G.J. Enes. Conceito que foi e ainda é
muitas vezes esquecido.
Quase
50 anos depois, com o aparecimento das vacinas e antibióticos, os médicos
pensaram, com uma certa dose de sobranceria, que o combate aos infinitamente pequenos estava ganho. Os
antibióticos matavam todos os micróbios e as vacinas proteger-nos-iam de todos
os vírus. A resistência aos antibióticos começou a surgir, devido ao abuso
desta arma terapêutica e quando das epidemias da SIDA, Ébola, Zika, Dengue e
agora o SARS-CoV-2. Ficámos desarmados, não existiam vacinas
Tivemos
e temos de reaprender hábitos e atitudes que as nossas mães e avós nos
ensinaram e que a maioria tinha esquecido ou não tinha transmitido às gerações
mais novas. Lavar as mãos de maneira eficaz antes de comer ou depois de ir à
casa de banho são hábitos que, infelizmente, nem sequer na escola se está a
ensinar. Tossir e espirrar protegendo com a prega do cotovelo. Basta andar
pelas ruas da cidade e sentir quantas vezes nos tossem em cima ou cospem para o
chão. Ar e Luz são fundamentais no
arejamento das casas. Mas só quem não fez domicílios acredita que é um hábito
da nossa gente. Mais difícil ainda é combater o medo atávico das correntes de
ar!
Temos
de mudar de paradigma perante o sucesso da biomedicina, temos de contrapor a
sociopsicomedicina, a saúde pública e a ecologia.
Hoje
fala-se da microbiota, ou seja o equilíbrio que nós temos com todas as
bactérias que coabitam connosco, existentes na nossa pele, boca e intestinos.
Somos indivíduos simbióticos.
Temos
de viver em equilíbrio com o nosso ecossistema e é por isso que a desinfecção,
ou melhor, a esterilização das ruas, transportes, praias ou as fumigações de
desinfectantes à entrada dos serviços podem causar o aparecimento de mais
bactérias, vírus e fungos novos. Temos
de respeitar os ecossistemas.
Quem nos mandou meter com os morcegos!
No
estado actual, os conselhos continuam a ser o lavar bem as mãos (o Posto de Desinfeção
tinha um chuveiro e uma banheira para os desinfetadores usarem no fim do dia
depois de despirem os seus fatos de proteção), desinfetar os puxadores das
portas e casa de banho, usar máscaras em ambiente fechado e respeitar o
distanciamento social.
Se
depois desta pandemia ficarmos mais solidários (preocupados com os outros) e
mantivermos regras de higiene pessoal no local de trabalho e dentro de casa será
já um grande ganho.
________________________
(1)
Antisséptico/desinfectante de acção rápida e eficaz contra bactérias, fungos e
vírus, cujo ingrediente activo é um amónio quaternário de 2ª geração -
DIDECYLDIMONIUM CHLORIDE.
(2) "(…) as entradas do país, por Elvas, ramal de Cáceres, Castelo de Vide,
Vilar Formoso, Barca de Alva e Valença (…)" .
(3)Ontem como hoje, utilizaram-se expressões
como defesa e invasão, sugerindo um estado de guerra.
(4) João
Franco já manifestava tendências autoritárias, proclama mais tarde a ditadura,
em 1907.
(5)Mudanças do tempo: hoje o médico poucas palavras tem a dizer nas obras sanitárias
(6)Talvez a sala de um nobre da corte de Guilherme II.
(7)Posto ficou muito mais barato que os construídos em Berlim e Londres.
******
O respirador alemão era feito de um pedaço de esponja fixa em cujas
extremidades se pegava uma tira de caoutchouc.