SERVIÇO NACIONAL DE SAUDE
O regresso ao passado
A ofensiva contra o Serviço Nacional de Saúde pelas forças
conservadoras - agora dirigida pela equipa do ministro Paulo Macedo - tem sido
uma constante. A desculpa inventada é a falta de sustentabilidade do sistema.
A destruição do SNS significará o fim do sonho, acarinhado
por muitos profissionais de saúde e pelo povo português, do direito à saúde.
A aprovação da Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde na
Assembleia da República, em Outubro de 1978, obra da luta prolongada dos
médicos progressistas com o apoio das populações, foi o começo da realização
desse sonho.
Esta lei, que ficou conhecida pela lei “Arnaut”, venceu os
projetos alternativos da direita, que defendiam a medicina convencionada e o
seguro-doença. Sistemas virados para uma medicina individualista de cariz
curativo, ignorando os cuidados primários, a prevenção da doença e a promoção
da saúde.
Os atuais partidos do governo (PSD e CDS) têm inscrito no seu
ADN a filosofia medievo-fascista do chamado “ Estado Novo”, tão bem definida
neste texto da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) em Outubro de 1969.
«...a saúde e a
proteção sanitária foram montadas e mantidas em Portugal não como um direito
que assistia aos cidadãos – o direito à saúde – mas como um acto decorrente da
caridade das consciências, consubstanciado no célebre “slogan” que há 15 anos
fazia furor “os que podem aos que precisam” e sobre o qual se pretendia montar
a assistência e organização hospitalar do país»
No mesmo programa da CDE, em 1969, no fim do capítulo “Os
problemas da saúde”, propunha-se já a criação de um Serviço Nacional de Saúde.
A política de saúde prestada pela Federação das Caixas de
Previdência redundou num fracasso estrondoso. Portugal atingiu os piores níveis
de saúde da Europa, onde coexistiam doenças do terceiro mundo, como o
Kawshiorkor e outras formas de malnutrição,
a par das doenças de países industrializados.
A mortalidade infantil era de 44,83 por mil e atingia no
distrito de Vila Real o número de 90,99 por mil nados vivos, as doenças
infeciosas e parasitárias abrangiam 23,5 por cem pessoas por mil habitantes, a
esperança de vida à nascença era para os homens de 64,7 e para as mulheres de
71,1. (in Subsídios para o lançamento das bases
do SERVIÇO NACIONAL DE SAÙDE, Nov. 1974)
Assim andava o país dos brandos costumes e dos governos
“autoritários”, como agora certos historiadores apelidam a Ditadura.
Sem pretensões de querer fazer história, pois não é esse o
intuito deste artigo, irei salientar apenas alguns factos: os avanços que
tinham sido conseguidos nos finais do século XIX e primeiras décadas do século
XX, nomeadamente no campo da saúde pública, sofreram graves retrocessos com o
regime fascista instaurado em 1926 no nosso país. Os seguros sociais
obrigatórios tinham sido instituídos em 1919, enquanto, por exemplo a França,
só os adotou alguns anos mais tarde.
- Na década de 50 e 60, os médicos internos não auferiam
qualquer remuneração e, durante algum tempo, ainda tinham de pagar uma quantia
para terem direito à formação, e mesmo os médicos do quadro recebiam aquilo a
que se chamava gratificação simbólica. Várias comissões de médicos pediram ao
longo dos anos o estabelecimento de uma remuneração condigna, o que sempre lhes
foi negada, com o argumento que podiam recorrer à clinica livre. Nessa altura,
a saúde era tutelada pelo Ministério do Interior, o que só por si diz tudo e
explica como o fascismo encarava a saúde dos portugueses.
- Em 10 de Dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações
Unidas aprovou a Declaração dos Direitos do Homem.
No seu parágrafo 25 pode ler-se: “Cada pessoa tem o direito a um modo de vida que assegure a sua saúde
pessoal e bem-estar, assim como à sua família, incluindo a alimentação,
vestuário, habitação, assistência médica e as necessárias garantias de uma
assistência social. Tem o direito à segurança em caso de desemprego, invalidez,
viuvez ou se perder os meios de subsistência por circunstâncias de que não é
responsável.”
Um novo conceito é criado, mais tarde reafirmado pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), que
define a saúde como um estado de
completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças.
- A discussão, em Portugal, em finais dos anos 30, sobre a
socialização ou estatização da medicina, instalou-se no meio médico e colheu
vários argumentos prós e contra.
Inúmeros jornais de divulgação médica e mesmo revistas
científicas, nacionais e estrangeiras, nacional da medicina, Jornal do Médico,
vol.10, pp. 65-66, 1947,V. Marques Guedes)
Os argumentos, ainda hoje utilizados, para criticar a
medicina estatizada são os mesmos de há 70 anos: a liberdade de escolha do
doente, o horror do médico-funcionário e a burocratização destruidora do
estímulo financeiro.
- No pós- guerra aparecem na Europa, sobretudo nos países
nórdicos e na Grã-Bretanha, medidas de nacionalização dos serviços médicos, sem
a socialização dos meios de produção, entre as quais o Serviço Nacional de
Saúde Britânico.
- Em Portugal, em 1939, o primeiro Centro de Saúde é
constituído devido ao empenho de um grupo de enfermeiras de regresso do EUA e
do Canadá, bolseiras da Fundação Rockefeller, onde finalizaram a sua formação,
e à colaboração de médicos de saúde pública que convenceram os poderes públicos
da época a iniciar a experiência piloto do Centro de Saúde de Lisboa.
Os apoios da Fundação Rockefeller a Portugal foram
condicionados pelos seguintes princípios: “Serviços técnicos dirigidos e desempenhados
por pessoal devidamente especializado; Pessoal exclusivamente ocupado
nesse trabalho, isto é em full-time; vencimento com suficiente
largueza para atrair os melhores médicos e visitadoras, e para lhes
garantir um nível de vida que os dispense de recorrer a outra qualquer ocupação
ou emprego”. Estes princípios foram
aceites pelo director-geral de Saúde à época.
(In Acta Pediátrica Portuguesa
0873-9781/09/40-4/189, Centro de Saúde de Lisboa, Notas Históricas)
Esta experiência, que durou 10 anos, acabou abruptamente por
ordem do ditador, com a expulsão da função pública de vários dos seus
responsáveis.
Os Centros de Saúde só viriam a ser constituídos mais tarde,
em 1971, com a reforma Gonçalves Ferreira, com 32 anos de atraso.
- A década de 50 é a de maior contestação à política de saúde
do regime. Surge o Movimento dos Novos que se estendeu por todo o país e esteve
na origem do Relatório sobre as Carreiras Médicas (1953-1961).
O regime fascista proibia a discussão de quaisquer temas
políticos e a saúde era um deles. Assim, o debate sobre as carreiras médicas,
discutido na Ordem dos Médicos, foi apresentado como um tema puramente
socioprofissional.
Nesse âmbito, grandes
assembleias de médicos realizaram-se por todo o país, culminando com a
aprovação do Relatório sobre as Carreira Médicas na Assembleia Geral
Extraordinária de 17 de Junho de 1961.
A luta pela sua aplicação foi longa, apesar do apoio expresso
de várias personalidades médicas afetas ao regime de então, e continuou durante
muitos anos.
A esperança da conquista do direito à saúde renasceu então
com o 25 de Abril de 1974.
Realizaram-se em todos os hospitais grandes assembleias de
trabalhadores, elegeram-se comissões de gestão, criou-se o Secretariado
Nacional dos Hospitais Centrais e Distritais, nasceu, por fim, o Sindicato dos Médicos da Zona Sul. A Ordem
dos Médicos passou a ter funções sindicais.
O sindicato promoveu reuniões, em Lisboa, com colegas
acabados de chegar do exílio noutros países para dissertarem sobre os modelos
de sistemas de saúde. Recordo-me, durante o ano de 1974, das conferências de Luís
Bernardino, médico pediatra, sobre o National Health Sistem, e de Tito Seabra
Diniz, psiquiatra, sobre o sistema de Saúde Soviético.
Nesse mesmo ano em Novembro, a Secretaria de Estado da Saúde
publica o chamado livro cinzento, Subsídios
para o lançamento das bases do Serviço Nacional de Saúde, contestado no
livro cor-de-rosa de Abílio Teixeira Mendes, Propostas Para um Plano de
Emergência Nacional de Saúde em Janeiro do ano seguinte.
A partir de 1975, o serviço médico à periferia torna-se no
primeiro fio da rede de cuidados de proximidade, dado que os centros de saúde
eram ainda incipientes e de criação recente. Os jovens médicos e demais
trabalhadores de saúde empenharam-se em transformar os índices sanitários do
país, até então motivo de vergonha nacional, entre os melhores a nível mundial.
Como resultado de todas estas acções, a maioria através das
suas estruturas representativas, a Assembleia da República aprovou a Lei do
Serviço Nacional de Saúde, em 16 de Maio de 1978, e mais tarde da Lei 310/82
sobre as Carreiras Médicas.
Esta pequena dissertação histórica sobre a saúde em Portugal
serve apenas para relembrar que os grandes avanços na saúde em Portugal
surgiram quando os médicos e demais trabalhadores da saúde, com as suas
organizações representativas, decidiram modificar o panorama da saúde. E
conseguiram-no, erguendo um dos melhores serviços de saúde do Mundo. Isto sem
retirar o mérito aos governantes António Arnaut, Mário Mendes e Paulo Mendo.
Eis senão quando um secretário de estado da Saúde descobriu
que promover a saúde pública e os cuidados primários de saúde sai mais barato
ao SNS, genial!
Não esquecer que foi na Conferência de Alma Ata, realizada
pela OMS em 1978, que se concebeu uma política de cuidados de saúde primários.
Os países que basearam os seus serviços nacionais
preferencialmente em medidas de saúde pública, higiene e prevenção,
desenvolvendo em primeiro lugar os cuidados primários e continuados, muitas
vezes em detrimento dos cuidados hospitalares ultra-especializados, possuem
,agora sistemas menos dispendiosos.
A defesa de uma política de cuidados primários de saúde,
incluindo cuidados dentários, foi sempre preconizada pelos sectores
progressistas dos trabalhadores da saúde, contra uma política hospitalocêntrica
desenvolvida pelos partidos do arco da governação.
O exemplo negativo mais flagrante situa-se no Ribatejo com a
construção de cinco grandes hospitais num perímetro de 50 Km.
O atual governo continua a apoiar a privatização dos serviços
de saúde, não só com as parcerias público/privadas, como diretamente através da
ADSE com acordos com os hospitais privados.
Será que o douto secretário de Estado quer dar o pontapé de
saída para os cuidados primários seletivos e a sua privatização, “a canasta
básica”, proposta no relatório do FMI para Portugal ?
O Serviço Nacional de Saúde continua a ser uma medida
politicamente moderna, socialmente avançada, cientificamente correcta e com
provas dadas na efectividade e eficiência dos cuidados prestados, em particular
nos ganhos de saúde alcançados, como escrevi em 2011 no meu programa de
candidatura a bastonário da Ordem dos Médicos e que reafirmo.
O sucesso do SNS tornou o país e este ficou irreconhecível:
-aumento da esperança
de vida,
-diminuição espetacular da mortalidade infantil e das doenças
infectocontagiosas.
No indicador global para os resultados em saúde, Portugal é
actualmente, segundo dados da OCDE, o segundo país com melhor evolução entre
1970 e 2009.
A história da saúde no nosso país mostra à exaustão que temos
ótimos técnicos em todas as áreas e estruturas representativas dos
trabalhadores da saúde que poderiam ajudar o Sr. ministro a tomar as decisões
acertadas para a sustentabilidade do SNS.
Infelizmente este governo, com a vinda da Troika, demitiu-se de pensar e de uma
forma bacoca e saloia entregou os destinos do país a qualquer especialista
estrangeiro.
A reforma do SNS, tendo em conta a sua sustentabilidade, está
a ser pensada por uma comissão recentemente nomeada pelo ministro da Saúde e
que deve apresentar a solução milagrosa em 2014, como se saísse o coelho do
chapéu de um mágico.
Mais uma comissão de aconselhamento, apenas com dois
funcionários do Estado e quatro do sector privado, e sem representantes dos
Sindicatos e das Ordens do sector da saúde.
Sr. Ministro, o país está pobre de recursos, não gaste tanto
dinheiro com as reuniões destas comissões com personalidades vindas de
Amesterdão, Londres, Genebra, etc. porque com esta composição das comissões já
sabemos quais vão ser os resultados: o Serviço Nacional de Saúde é
insustentável e vamos voltar mais de 50 anos para trás, seguindo o velho slogan
fascista “ os que podem aos que precisam”, para montar a assistência e
organização hospitalar de Portugal.
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