DAVID E GOLIAS
Na vida há sempre duas atitudes perante os poderosos: ou
lutar por aquilo que achamos justo ou, ao contrário, sujeitarmo-nos.
A segunda atitude tem sido a mais visível em Portugal. Nunca
há alternativas ao que nos é ditado pelos poderosos e nem sequer ousamos dar a
nossa opinião com medo de represálias.
Vejamos o que têm feito os responsáveis pela saúde no nosso
país. O memorando da troika dita para o governo cortar 550 milhões de euros no
orçamento da saúde e ele aplaude e corta o dobro.
Toda a política de saúde, instituída pelos sucessivos
ministros, peca por querem introduzir as leis do mercado num sistema, o Serviço
Nacional de Saúde, cuja ambição é permitir a cada um o acesso aos melhores
cuidados.
O mercado não consegue garantir um equilíbrio de oferta e
procura médica e por isso só produzirá a exclusão, a exemplo do que se passa
nos Estados Unidos.
Na cegueira da poupança e da filosofia neoconservadora, a
seguir aos cortes de salários dos trabalhadores da saúde passou-se ao corte nos
medicamentos mais caros, utilizados no tratamento dos doentes com SIDA, artrite
reumatoide e oncológicos.
Depois de um arremesso de política de genéricos que, baseado
na mesma filosofia do “ laissez faire, laissez passer”, conduziu a uma
proliferação nefasta de medicamentos com o mesmo principio ativo - que só
desorientou médicos e doentes - tiveram agora
de admitir que o grande gasto em medicamentos vem do tratamento das três
situações atrás citadas.
E qual foi a solução? Impedir muitos doentes de receberem os melhores cuidados à luz do estado da
arte.
Grave foi por isso o beneplácito da Comissão Nacional de
Ética para as Ciências da Vida firmado no seu parecer nº64/CNECV/2012.
Se os nossos governantes adotassem a primeira atitude, ou
seja lutar pelo que é justo mesmo que à partida pareça uma luta de David contra
Golias, deviam interrogar-se porque é que os medicamentos são tão caros?
A população nunca foi devidamente esclarecida sobre o facto da
patente de um medicamento novo poder ir até 15 anos, e, assim sendo, ninguém
pode produzir genéricos desses novos medicamentos. As multinacionais da
indústria farmacêutica enchem os bolsos à custa dos doentes.
Mas existem países que por vezes batem o pé ao Golias. Certos
que são países com muito mais recursos que o nosso.
Os medicamentos usados no tratamento da SIDA, retrovirais,
foram obrigados a baixar os preços devido à ameaça do Brasil e da Africa do Sul
de produzirem genéricos destes medicamentos, à revelia das leis das patentes.
Na India, continua a luta jurídica entre as empresas
farmacêuticas nacionais e a multinacional Novartis AG pela produção de Glivec,
um medicamento usado em oncologia.
O Supremo Tribunal da India pode fazer história emitindo um
veredito sobre as patentes dos genéricos que poderá mudar as regras neste
terreno e limitar o peso mundial da nação asiática como abastecedor de
medicamentos mais baratos.
Conhecida como a “farmácia dos pobres”, a India, tem-se
negado, desde 2006, a conceder uma patente à Glivec, argumentando que não é um
produto novo, mas a modificação de um composto conhecido, o mesilato de
imatinib.
Este medicamento é considerado pelos oncologistas um grande
avanço no tratamento da leucemia mieloide crónica e de alguns tipos de tumores
gastrointestinais, porquanto o corpo absorve-o até 30% mais do que outros
compostos.
Se a Novartis ganhar o litígio, ficará com os direitos
exclusivos de comercialização e retirará do mercado as versões mais baratas dos
fabricantes indianos do genérico, que fornecem a 1.2milhões de pessoas no país
e a outras nações pobres de todo o mundo.
No Ocidente, um tratamento anual pode custar 70 mil dólares,
ao passo que na India, o tratamento anual com as versões de genéricos, não
passam dos 2mil e 500 dólares.
Podem dizer: mas Portugal não tem uma indústria farmacêutica
capaz de responder a tal desafio. Infelizmente, nunca foi política dos
sucessivos governos criar uma indústria farmacêutica nacional e deixou-se acabar
alguns laboratórios fabricantes de medicamentos, entre os quais o Laboratório
Militar que tão bem serviu durante a guerra colonial.
A política atual deve ser de proteção ao que resta da nossa
indústria farmacêutica, caso da Bial, e participarmos ativamente nas instâncias
europeias.
Por ocasião da cimeira de Lisboa, em 2000, o diretório geral
das empresas da Comissão Europeia criou um grupo de trabalho, ao qual Portugal
pertence, que devia apoiar a indústria farmacêutica europeia para que se viesse
a ser mais competitiva do que a sua homologa norte-americana.
Na conclusão desta cimeira afirmava-se que, em 2010, a Europa
devia tornar-se “ a economia do conhecimento a mais competitiva e a mais
dinâmica do planeta”.
Formou-se um G10 que se autodenominou “ os decisores supremos
em matéria de medicamentos na Europa”. Uma parceria público-privada foi montada
e como sempre o privado ganhou e muito. Depois de várias propostas, no sentido
de criarem um contra lobby, serem recusadas, o Conselho prolongou por 15 anos a
proteção da patente dos medicamentos de marca em relação aos seus equivalentes
genéricos.
Para um país como a Irlanda o período era de 6 anos. Assim,
na Europa, as multinacionais farmacêuticas recebiam um presente, a mais longa
proteção do mercado mundial.
Foi por isso que a Comissão quis aprovar esta medida em 2004,
antes da entrada dos países de leste na União Europeia. Nestes países, a
regulamentação não era tão estrita em relação ao período da validade das
patentes. Muitos deles possuíam uma indústria farmacêutica que tinha capacidade
de produção da maioria dos medicamentos a preços mais baixos. Com a aplicação
da nova legislação europeia do registo e proteção das patentes, a vantagem
comparativa destes países foi reduzida a zero.
Portugal, juntamente com outros países em dificuldades financeiras,
pode e deve perante esta comissão e a agência dos medicamentos europeu exigir a
diminuição do tempo das patentes dos medicamentos de marca, assim como o apoio
às indústrias farmacêuticas nacionais. Assim faria David para defender o seu
povo na sua luta desigual contra Golias.
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