Recepção aos caloiros de Medicina
Eu a discursar na Cantina 1963
O CONVIVIO OU A CANTINA VELHA
DIA DO ESTUDANTE 24 DE MARÇO, novo jantar de comemoração, 38 anos passados da greve de 1962.
Este ano o jantar foi na Cantina velha, como disse o meu amigo Artur Pinto, até a Cantina está velha.
Como sempre nestes encontros de memória, que durante muito tempo detestei e agora com a idade a avançar vou aderindo, revi muitos amigos nas brumas da memória, há anos.
Momentos de recordações, lembrei-me da inauguração da Cantina, ou melhor do Convívio, e para refrescar as lembranças nada melhor que recorrer a uma informação dada por um bufo à PIDE nessa noite de inauguração. Para onde fossemos havia sempre um bufo, que vendia as suas informações à Policia por dez reis de mel coado, que miséria!
Hoje em dia espalha-se a ideia que a PIDE era uma polícia muito eficiente, a minha opinião nunca mudou, que esta como outras policiais políticas sempre funcionou à custa dos informadores.
Mas vamos ao que interessa, a tal informação histórica: INFORMAÇÃO Nº 26/63, datada de 29-1-63 e com um visto de 31-1-63.
“… No passado sábado, dia 26, desloquei-me ao “Convívio” da Cidade Universitária, para assistir ao Baile dos Alunos de Medicina e Direito, o qual teve início cerca das 23h00. (Os bufos também dançam)
À entrada fui surpreendido por dois indivíduos, segundo julgo estudantes, que distribuíam o “Comunicado nº 15“, sem qualquer receio de serem vistos. Tal distribuição continuou enquanto se dançava e em pleno recinto.” (IMAGINE-SE!)
Em seguida o relatório refere-se ás manifestações estudantis «… gritando em coro efe,erre e FRa….Hurra!...» Aí o Reitor interrompe e continua o relato assim: «….Meus Senhores! Cumpre-me interromper, para vos dizer que autorizei a realização desta festa………porque me prometeram que a única finalidade…era divertirem-se…….Pois bem verifico que isto não é mais uma festa mas sim uma reunião com uma única finalidade: “Actividades subversivas”…»
(Já adivinharam quem era o Reitor, exacto o PAULO CUNHA)
Mas a eloquência do Bufo, vai melhorando com o decorrer do texto: «…Estas afirmações foram recebidas com assobios e frases indignas de indivíduos com cultura geral, como o são JORGE SAMPAIO LUCENA, JOSÉ MARIA SANTOS, ALBERTO TEIXEIRA, etc.» O primeiro nome, é uma mistura entre Jorge Sampaio e Manuel Lucena, o Alberto Teixeira, está anotado a tinta, na margem do papel Teixeira Ribeiro e o José Maria Santos não consigo identificar.
O Magnifico Reitor continua a falar dizendo que conseguiu com o Ministro da Educação libertar três estudantes dos quatro presos, «…o outro MEDEIROS FERREIRA, continuou, visto não estar preso apenas como dirigente associativo mas sim por actividades contra a segurança do Estado, o que já estava provado pelas Autoridades competentes»
Vejam os mais novos a naturalidade com que um Reitor afirma, segundo palavra de bufo, que o Medeiros Ferreira não estava preso apenas como dirigente associativo, como se fosse o mais normal, mesmo naquela época, andar por aí a prender dirigentes associativos.
O relatório continua transcrevendo o discurso do Paulo Cunha: «…”Há dias, acompanhado por um professor universitário argentino, entrei no Bar do “Convívio”; os estudantes não só não cumprimentaram, como nem sequer se levantaram, demonstrando assim, perante um desconhecido, a falta de educação e respeito pelo Reitor, o que não é digno de estudantes.”
Tudo isto que o Reitor estava a apontar-lhes, era recebido com assobios e urros, perante milhares de pessoas.»
O bufo depois de comunicar que os dirigentes associativos pediram para usar da palavra ao que o Reitor acedeu, escreve: «um deles, segundo me parece o ABÍLIO TEIXEIRA MENDES*, quintanista de Medicina, não só desmentiu em público o seu Reitor como disse ainda que concordava em absoluto com a abertura do Museu (prometido por Paulo Cunha) e que, para isso, ele próprio iria colaborar na sua qualidade de aluno, mas que, nunca era de esquecer a colocação ali do Decreto-Lei 44.632. Nesta altura o Reitor interrompeu, tendo este aluno terminado o seu discurso, que eu considero “sujo e indigno”, dizendo que a Universidade dependia deles e que, para a vida académica, eram necessárias duas coisas: a autonomia e a autodeterminação…….
…Falou ainda o estudante JORGE SAMPAIO LUCENA (e o bufo insiste, mas temos que o desculpar pois o Jorge ainda não tinha sido eleito Presidente da República), do 5º ano de Direito, que não só tornou a desmentir o Reitor como, depois deste o ter interrompido, disse que um dos princípios da democracia era que não se interrompia qualquer orador quando proferia o seu discurso. Disse ainda que concordava em absoluto com a ideia do Reitor esclarecer o público por intermédio da Imprensa pois eles tanto o têm tentado mas a “suja Censura” sempre o tem evitado.»
O relatório do informador termina aqui, com a pressa de mostrar serviço, não ficou para o baile, nem para a eleição da Miss Caloira.
Assim, não pôde informar que o Reitor – Palhaço não resistiu ao convite da Miss Caloira de Medicina e veio dançar, comer e beber para o meio dos estudantes em festa.
O que levou alguns de nós, mais radicais, a propor o seu rapto, o que nunca sucedeu.
Os “soixantards“ meus amigos devem lembrar-se que terminámos todos a cantar o “hino da Cantina”:
“ Passa a Benard**,/ Passa e a barretaça vai enfiar/ A rapaziada come / fica com fome tem de pagar/ e se a malta faz barulho por ter entulho à refeição/o Reitor não acha graça e ameaça fechar a Associação.
Uma cantina para estudantes/ isso era bom mas era dantes/ agora a malta se quer comer/ tem de pagar, sem refilar e a Benard a encher.”
(Música da marcha do Bairro Alto, vencedora em 62 das marchas populares, e letra de JL Boaventura e A. Mendes)
Tenho que admitir que à parte alguns erros o relatório retratou a realidade daquele dia.
O Reitor tinha prometido aos dirigentes associativos da Universidade Clássica, Medicina, Direito e Letras, a abertura do Convívio e de um Museu. Os dirigentes devem ter exigido a libertação dos colegas presos entre os quais Medeiros Ferreira.
Foi decidido, portanto, nesse ano realizar em conjunto o Baile de recepção aos caloiros de Medicina e Direito e era com este tipo de manifestações que se trazia muitos estudantes à luta contra a Ditadura; por isso o ódio que tinham a todas as formas de movimentos associativos.
Se a memória não me falha foi em 1963 que na inauguração do ano lectivo esteve presente o Presidente da República, Américo Tomás. Um grupo de estudantes, entre os quais eu, numa atitude quixotesca, virou as costas ao presidente, o que valeu uma tarde passada na António Maria Cardoso, onde conheci o Chefe Rego e o Sub-inspector Passo, os dois seguramente vieram a auferir, mais tarde, pensões de reforma por serviços prestados à Nação.
_______________________________________________
*nesta data o Abílio estava no Porto, por ter sido expulso da Universidade de Lisboa por participação na greve de 1962
**A pastelaria Benard era a concessionária da Cantina, contra a vontade das Associações de estudantes da Universidade Clássica que se tinha proposto fazer a sua gestão