sábado, 25 de julho de 2020

AR E LUZ




AR e LUZ




Assim como de uma só semente se pode fazer uma grande floresta, também de um só germe se pode fazer uma grande epidemia - John Tyndall

 

As imagens televisivas, em tempos de pandemia, de funcionários a desinfetarem ruas, casas, praias, além da montagem de dispositivos (1) para pulverizarem todo o corpo dos funcionários  à entrada dos locais de trabalho, levou-me a ir ao fundo do meu baú das memórias retirar um livro de 1896: "A Desinfecção Pública em Lisboa, por Guilherme José Ennes, director do Posto de Desinfecção e Socio da Academia Real das Sciencias”. 

Assistia-se, nestes finais do seculo XIX, ao amanhecer da moderna medicina com figuras como Pasteur, Koch, Lister e Roux.

O relatório de G.J. Ennes sobre a desinfeção pública de Lisboa, apresentado a João Ferreira Franco Pinto Castello Branco, então ministro e secretário de estado dos Negócios do Reino, que ficou conhecido na história por João Franco, é uma obra com 231 páginas que descreve minuciosa e pormenorizadamente toda a estratégia e táctica adotada, terminando com um anexo com os mapas de despesa desde 2 de Maio de 1894 a 30 de Junho de 1895, que faz inveja a muitos relatórios do nosso tempo.

A sua leitura, apesar de se terem passados 124 anos, é de todo o interesse neste contexto da pandemia que nos assola.

O livro/relatório começa com uma carta extensa a João Franco explicando a necessidade da criação de um posto e unidades móveis de desinfeção na cidade de Lisboa e do Porto para combater uma epidemia de cólera.

Guilherme Enes inicia assim a carta: "O enorme movimento scientífico, que teve por ponto de partida os trabalhos de Pasteur, e que a todos nos empuxou para a ideia e para a comprehensão dos infinitamente pequenos, avocou as attenções geraes para esta nova sciencia da desinfecção que, como não podia deixar de ser, se tornou um modo certo de augmentar as nossas forças therapeuticas".

Não sei se João Franco teria algum conhecimento de saúde pública ou das querelas existentes entre a medicina velha e a medicina nova, o facto é que autorizou a construção do Posto de Desinfeção Pública de Lisboa e a prática de desinfeções ao domicílio.

Antes, porém, G.J.Enes escreve: " Em 1892 o cholera que lavrava no meio dia da França, e que invadira a Hespanha pelo norte, manifestando-se alguns casos na Byscaia, obrigou a adoptarem-se medidas extraordinárias de saúde pública contra a ameaça de uma possivel invasão".

"Organizara-se a defeza da fronteira nos pontos interessados pelos caminhos de ferro (2) , estabelecendo-se o serviço de desinfecção pelo vapor humido sob pressão, e pensou-se em augmentar os meios de defesa em Lisboa e no Porto, ordenando e systematisando  aquelle serviço e munindo igualmente as duas cidades com os aparelhos Geneste e Herscher , como instrumentos poderosos para se conseguir a efficacia do trabalho no caso de se realizar a invasão presumida". (3)

Como a epidemia parecia estar controlada no país vizinho houve mais tempo para a construção do Posto de Desinfeção de Lisboa.

Depois de uma saga, ainda habitual nos nossos tempos, de sucessivas recusas a ceder um terreno para a construção do dito Posto, desde a Câmara, o Instituto Industrial e a cerca do convento de Santa Joana, o problema só foi desbloqueado quando João Franco assume a chefia do governo (4). Altura em que determinou a posse da propriedade do terreno do extinto convento das Francesinhas. 

"Estava, pois, vencida a principal difficuldade, atacada em 14 de outubro de 1892, isto é, consumidos duzentos cincoenta e cinco dias em um negocio tão util, tão simples e, apparentemente, de tão facil resolução; e sabe Deus quanto mais o seriam, se não fôra o ministro actual havel-o tomado a peito, tratando-o pessoalmente."

Como eu reconheço este nosso país !!

A construção do Posto obedeceu aos seguintes critérios, assim descritos:"(…) assentar em bases duradoiras e adaptar a desinfecção official a um typo singelo, economico e efficaz, a precisão de submetter a inconstância e instabilidade da opinião pública n'estas materias para não regatear o preço da desinfecção (…) como não regateia o dos serviços dos incendios, pois que o fogo destroe-lhe os haveres, e as doenças contagiosas destroem-lhe a familia".  Ao mesmo tempo o responsável pela desinfeção em Lisboa tinha que educar todo o pessoal e particularmente os desinfectores porque as epidemias não esperam.

O relatório refere, com toda a justeza, o auxílio valiosíssimo do engenheiro do Posto, António Jorge Freire, e retrata a visão de um trabalho de equipa, com esta citação: "E, se é uso dizer-se que em construções sanitárias o medico é a cabeça (…) e o engenheiro o braço(…) a verdade manda dizer que não foi assim no caso presente, e que a expressiva phrase franceza: deux têtes dans le même bonnet, é a que melhor se aplica" (6)

O edifício foi construído num recinto fechado e isolado das habitações particulares. Situado "no centro de gravidade da população de Lisboa e confinado com o bairro populoso e pobre da Esperança (…) um logar no centro de população densa em taes condições era tudo quanto podia desejar-se para o estabelecimento de um Posto de desinfecção publica (…). E convencido estamos de que, em nenhuma cidade da Europa, (…) se encontram estes em condições iguais".

Para a redução de custos, problema constante do nosso país, o que estava previsto no plano geral para três edifícios foi restringido a um edifício (depósito de desinfetantes e arrecadação, cocheira, administração, residência do empregado, cavalariça).  

Conseguiu-se uma separação entre zona limpa e suja, assim como desligada das habitações próximas. Cito: "Os principios gerais a que deviam subordinar-se todas as obras eram: casas amplas, cheias de luz, ventilação cruzada e circulação constante de ar. Ar e luz! Eis os dois poderosíssimos agentes microbicidas que queriamos ter sempre à nossa disposição, na lucta diaria contra os elementos morbigenos".

Relativamente à descrição do fardamento do desinfectador (nova profissão criada), - ver desenho - realço um pormenor, a protecção respiratória, que não figura no desenho, era uma máscara de esgrima, forrada com uma fina camada de algodão que se queimava sempre depois das operações de desinfeção.

Foi uma invenção lusa com a vantagem sobre o respirador alemão de cobrir toda a face e cabeça. O arquétipo da nossa atual e profusamente fabricada  viseira de proteção.

Todo este processo de desinfeção no Posto ou no domicilio estava suportado por uma "boa lei de desinfecção obrigatória, popular e viavel, porque põe em coalisão interesses scientificos e sociais, e habitos arreigados, não é um problema fácil” e a nossa  "(…) é reconhecidamente a melhor lei de desinfecção obrigatoria que existe na Europa".

Ainda hoje se continua a colocar o problema das liberdades individuais com que na altura se confrontava a saúde pública. Dou a palavra ao Dr Chautemps, conselheiro municipal de Paris, que a propósito do isolamento dos doentes contagiosos, que o relator desta obra cita: "Si libéral que nous soyons, il est une liberté pour laquelle nous avons ne nous sentir aucune tendresse, c'est la liberté de répandre la mort autour de soi”.

"No periodo a que se refere este trabalho, desinfectaram-se no Posto 154.395 peças de roupa e 1.563 artigos funerarios, e praticaram-se 866 desinfecções domiciliaries”. A doença só se repetiu apenas num  caso, e nenhum empregado ou familiar contraiu a doença.

Depois de vários considerandos sobre os produtos existentes para desinfeção, para os quais o pessoal do Posto estava preparado, que iam desde o miolo de pão, aplicado em casa ricas cujas paredes eram forradas a papel, ou em outra "guarnição rica" -  operação morosa e muito delicada  - até à creolina.

Com o miolo de pão húmido, sem estar muito duro ou mole, procedia-se à fricção, reunindo por meio de vassoura húmida e sem levantar poeira as migalhas que caíam no chão, e queimando-as no fim da operação.

O professor Ziemssens viu uma vez serem precisos 15 dias para desinfetar uma sala grande. Assim, rapidamente, substituiu a vassoura por uma esponja fina, contrariando a opinião dos seus colegas alemães.(6)

Voltando ao nosso burgo, aqui optou-se pela desinfeção sulfurosa por ser um processo económico e prático, segundo o nosso relator. Para tal tinha de se criar uma câmara sulfurosa (soufrière) numa casa, coisa bem simples  segundo a opinião de G.J. Enes.(7)

"Uma casa qualquer, sem janellas, calafetada de modo que o seu ambiente não possa comunicar com o ar exterior, com uma porta só que una completamente, e com uma abertura  ou chaminé de tiragem no tecto que se possa cerrar hermeticamente, quando convenha, e abrir a seu tempo para despejo de gaz, está logo convertida n'uma excellente soufrière".

Segundo uma lei de 28 de abril de 1894, era obrigatória a desinfecção nas seguintes doenças contagiosas:

Cholera e doenças choleriformes, febre amarella, peste, variola e varioloide, escarlatina, febre miliar, diphteria (croup e angina diphterica), febre typhoide, typho exanthematico, dysenteria epidemica, infecção puerperal (quando não seja exigido o segredo por motivo de gravidez) e por último Tuberculose.

“(…) porque o passado não está todo inevitavelmente morto, (...) porque o progresso é uma evolução e não deve ser revolução (…)".  G.J. Enes. Conceito que foi e ainda é muitas vezes esquecido.

Quase 50 anos depois, com o aparecimento das vacinas e antibióticos, os médicos pensaram, com uma certa dose de sobranceria, que o combate aos infinitamente pequenos estava ganho. Os antibióticos matavam todos os micróbios e as vacinas proteger-nos-iam de todos os vírus. A resistência aos antibióticos começou a surgir, devido ao abuso desta arma terapêutica e quando das epidemias da SIDA, Ébola, Zika, Dengue e agora o SARS-CoV-2. Ficámos desarmados, não existiam vacinas

Tivemos e temos de reaprender hábitos e atitudes que as nossas mães e avós nos ensinaram e que a maioria tinha esquecido ou não tinha transmitido às gerações mais novas. Lavar as mãos de maneira eficaz antes de comer ou depois de ir à casa de banho são hábitos que, infelizmente, nem sequer na escola se está a ensinar. Tossir e espirrar protegendo com a prega do cotovelo. Basta andar pelas ruas da cidade e sentir quantas vezes nos tossem em cima ou cospem para o chão. Ar e Luz são fundamentais no arejamento das casas. Mas só quem não fez domicílios acredita que é um hábito da nossa gente. Mais difícil ainda é combater o medo atávico das correntes de ar!

Temos de mudar de paradigma perante o sucesso da biomedicina, temos de contrapor a sociopsicomedicina, a saúde pública e a ecologia.

Hoje fala-se da microbiota, ou seja o equilíbrio que nós temos com todas as bactérias que coabitam connosco, existentes na nossa pele, boca e intestinos. Somos indivíduos simbióticos.

Temos de viver em equilíbrio com o nosso ecossistema e é por isso que a desinfecção, ou melhor, a esterilização das ruas, transportes, praias ou as fumigações de desinfectantes à entrada dos serviços podem causar o aparecimento de mais bactérias,  vírus e fungos novos. Temos de respeitar os ecossistemas.

Quem nos mandou meter com os morcegos!

No estado actual, os conselhos continuam a ser o lavar bem as mãos (o Posto de Desinfeção tinha um chuveiro e uma banheira para os desinfetadores usarem no fim do dia depois de despirem os seus fatos de proteção), desinfetar os puxadores das portas e casa de banho, usar máscaras em ambiente fechado e respeitar o distanciamento social.

Se depois desta pandemia ficarmos mais solidários (preocupados com os outros) e mantivermos regras de higiene pessoal no local de trabalho e dentro de  casa será já um grande ganho.

 

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(1) Antisséptico/desinfectante de acção rápida e eficaz contra bactérias, fungos e vírus, cujo ingrediente activo é um amónio quaternário de 2ª geração - DIDECYLDIMONIUM CHLORIDE.

 (2) "(…) as entradas do país, por Elvas, ramal de Cáceres, Castelo de Vide, Vilar Formoso, Barca de Alva e Valença (…)" .

 (3)Ontem como hoje, utilizaram-se expressões como defesa e invasão, sugerindo um estado de guerra.

(4) João Franco já manifestava tendências autoritárias, proclama mais tarde a ditadura, em 1907.

(5)Mudanças do tempo: hoje o médico poucas palavras tem a dizer nas obras sanitárias 

(6)Talvez a sala de um nobre da corte de Guilherme II.

(7)Posto ficou muito mais barato que os construídos em Berlim e Londres.


 

****** O respirador alemão era feito de um pedaço de esponja fixa em cujas extremidades se pegava uma tira de caoutchouc.