segunda-feira, 2 de agosto de 2010

MEMORIAS

As razões que levaram ao blogue estar parado, durante algum tempo, devem-se fundamentalmente ao lançamento da minha campanha para a eleição de Bastonário da Ordem dos Médicos e, por outro lado, à preparação de um livro de memórias com diversos amigos.

Durante as minhas férias fiz uma viagem nostálgica a Figueira de Castelo Rodrigo que como os meus seguidores sabem foi onde passei a fronteira a salto quando saí de Portugal em 1965, o mesmo caminho do Elefante Salomão. Seguramente no tempo do Elefante Salomão, assim como agora, a fronteira estava aberta. Quando eu passei estava fechada, não havia caminho nem de terra batida nem alcatroada. Agora vi uma ponte que aproxima mais a Beira Interior a Castilla y Léon e as aldeias de Escarigo a La Bouza.

Vejam as fotos e como tudo mudou em 45 anos…….



Passagem do riacho

A guarita ao longe
Até neste pueblo há uma Plaza Mayor
Ao fundo avista-se Espanha

E agora…….



Um trecho do Livro



" A viagem do Porto a Figueira de Castelo Rodrigo foi longa, quase um dia, as estradas nessa época, em Portugal, eram más, o que tornava as distâncias ainda mais longas. Chegámos à noite e fiquei na casa de um amigo do Alexandre, julgo que se chamava José Ricardo, e explorava uma pequena eira que pertencia à família da mulher. Tinha vindo de propósito de Lisboa para me acolher, nunca soube ao certo qual era a sua profissão.

As notícias não eram boas, tinham acabado de passar a fronteira cerca de trinta emigrantes ilegais vindos do Minho.

Figueira de Castelo Rodrigo ainda hoje é uma terra pequena, naquele tempo era uma pequena vila, com a sua praça central e o pelourinho. Toda aquela gente ficou acampada nessa praça na véspera da passagem a salto e fizeram, segundo as vozes do povo, um autêntico arraial.

O passador era homem “sério”, ao que diziam, recebia uma metade rasgada das notas em Portugal, conforme o preço previamente combinado, e a outra metade só encaixava passados os Pirenéus.
A ideia que eu tinha, e provavelmente certa, era que muitos destes passadores colaboravam com a PIDE, por isso decidi passar pelos meus próprios meios sem o auxílio de tais profissionais.

Em Figueira de Castelo Rodrigo esperava-se por um sinal do passador, pois todos os habitantes das zonas fronteiriças ou eram passadores ou guardas-fiscais, ou acumulavam as duas funções.
Assim, tive que esperar cerca de uma semana nesta pequena vila. O dono da casa apresentou-me, aos curiosos da terra, como um primo da mulher vindo de Lisboa para descansar, estávamos perto da Pascoa. Jantávamos no único restaurante da vila, num gabinete recuado, com mesa marcada. A entrada do restaurante era uma taberna.

À nossa mesa sentava-se o Sr. Capitão, assim era chamado, penso que era um militar expulso do exército depois de uma qualquer intentona contra o Salazar.

Era um homem de meia-idade e tinha aquela tez trigueira dos homens que vivem todo o ano no campo. Soube mais tarde que foi o Primeiro Presidente da vila, após o 25 de Abril, era à data, apoiante do MDP/CDE.
Ele foi o cérebro e o organizador da minha passagem a salto. O Alexandre ficou de me arranjar um carimbo falso de fronteira, pois o meu passaporte ainda era válido e só em Portugal pediam a autorização militar.

Um belo dia, chegou a boa notícia, na missa de domingo, em Pinhel, tinha sido visto o passador de braço dado com o chefe do posto da PIDE de Vilar Formoso, em amena cavaqueira.
O alerta estava dado, a travessia clandestina da fronteira, podia continuar.
Antes que viesse outro grupo de Minhotos, pressionei os meus amigos para dar o salto.

O esquema estava todo montado, o Capitão levava-me no seu carro, até onde podia, em direcção à fronteira, onde estaria um espanhol que me conduziria até ao primeiro “pueblo”. Aí o único carro de aluguer da vila estaria à minha espera e levava - me a Salamanca e daqui o Alexandre guiava-me até Hendaia.
Mas nem tudo aconteceu assim.

A passagem estava prevista para o dia 10 de Abril, dia do aniversário do meu pai, mas o Alexandre ainda não tinha o passaporte carimbado, de um posto fronteiriço português e assim tinha de aguardar mais uma semana. Por temperamento nunca mostrei a ansiedade e os nervos mas estava o que se diz em brasa e disse: "passo a salto dia 10 e está decidido".

O Alexandre concordou só que tinha de esperar por ele e o passaporte em Salamanca, ficaria aí perto de uma semana indocumentado. Assumi o risco e combinámos que todos os dias entre o meio-dia e a uma da tarde, estaria na Plaza Mayor, em Espanha todas as terras têm uma Plaza Mayor.

Na véspera de passar a fronteira a salto, à noite com a televisão ligada vi o meu irmão Carlos, com os Sheiks, a cantar em cima de um camelo, era a primeira apresentação do grupo na TV. O meu anfitrião disse com um ar de intimidade: “conheço muito bem este puto e toda a família, é um gajo porreiro”. Só que ele não adivinhava que estava sentado ao lado de um dos seus irmãos.
Entre as 7 e as 8 da manhã tinha de passar a fronteira pois o render da guarda fazia-se numa taberna de uma aldeia, e assim tínhamos uma hora para atravessá-la.

Fui transportado no carro do Capitão até onde ele podia chegar e depois caminhei a pé até avistar o espanhol. Durante o trajecto, o Capitão enganou-se no caminho e uma aldeã já de idade avançada com aquela cara enrugada de muitos e árduos trabalhos que a vida lhe tinha dado, sentada à ombreira da porta disse: - “Olhem senhores o caminho para a fronteira é pelo outro carreiro”

Depois de ter passado um riacho que se atravessava a pé, logo avistei o espanhol, era um jovem da minha idade vinte e poucos anos. O Capitão deixou – me e disse: “ segue sempre o espanhol mas com uma certa distância porque se fores apanhado não o comprometes”.
Assim fiz, chegado ao alto de um monte o jovem fez sinal para me aproximar e apontou para um pequeno pueblo plantado num vale, fazia lembrar aqueles pinturas a óleo do século XIX.

O espanhol disse “eu fico aqui, e tu vais até aquele pueblo, onde estará o táxi à tua espera”.
Estava em Espanha.

Olhei para trás para Portugal e pensei em tudo o que deixava, a Teresa ainda presa em Caxias, até quando? Será que foi muito torturada? Sabia pelo Alexandre, que já tinha tido visitas na cadeia. Os meus pais, os meus irmãos (o Abílio prestes a ser mobilizado para a Guerra), a minha avó, os camaradas, a Alameda, o Pão de Açúcar, as noitadas a discutir politica e a luta que iria continuar lá fora.

Ainda hoje não sei porquê, virei-me para aquele jovem desconhecido e disse “deixo para trás o meu país e há pessoas que nunca mais vou ver”, ao que ele retorquiu “solo las montañas nunca se encuentran” ..."



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3 comentários:

  1. Histórias incríveis que a vossa geração tem para contar, de facto. Sei que houve pessoas, nessas travessias para o outro lado da fronteira, a perderem a vida também...
    Desejo-lhe sorte para a sua campanha.

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  2. Gostei muito de ler como passaste a fronteira naqueles tempos.E ainda bem que pudeste fazer essas férias agora indicação de sobrevivência dessa lutas de então. Mas a luta continua amigo, como sabes!E a tua agora é venceres essa candidatura.Continua!!!
    Um abraço.

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  3. Realmente é uma história incrivel, ainda bem que tudo correu bem e conseguiste reencontrar a familia e amigos passado alguns anos... A Historia Portuguesa é repleta de actos corajosos que infelizmente são poucos divulgados, principalmente nesta época ditatorial. Obrigado por partilhares esta historia connosco.
    Bjs!

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