sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

CARTA DO COLEGIO DE NEFROLOGIA AO DIRECTOR DA SIC-NOTICIAS

ORDEM DOS MÉDICOS


Colégio da Especialidade de Nefrologia

Exmo. Senhor

Dr. António José Teixeira

Director da SIC-Notícias

Enviado por correio electrónico

Lisboa, 12-01-2012

Assunto: Programa ContraCorrente de 10-01-2012 - Racionamento dos cuidados de saúde - Hemodiálise crónica em doentes com idade superior a 70 anos

Senhor Director,

No programa ContraCorrente do dia 10 transacto, que contou com a participação de cinco ilustres opinion makers, foram produzidas afirmações e assumidas posições que, pelo seu provável impacto na opinião pública, não podem ser deixadas sem contraditório.

Sendo reconhecida a superior craveira intelectual dos intervenientes, essas posições só podem ser justificadas, no mínimo, por uma indesculpável leviandade na abordagem a um tema de particular relevância como é o acesso dos cidadãos a cuidados de saúde.

Com efeito, na continuação de uma sugestão de Sobrinho Simões (SS) para que fossem introduzidas medidas de ,,racionamento" no Serviço Nacional de Saúde (SNS) - embora as medidas que invocou fossem de ,,racionalização" e não de ,,racionamento" -, António Barreto (AB) pegou entusiasticamente no tema e defendeu que não fazia sentido o Estado suportar tratamentos onerosos em doentes idosos, referindo como exemplo o tratamento hemodialítico em pessoas com mais de 70 anos.

De imediato, Manuela Ferreira Leite (MFL) corroborou a posição de AB, ressalvando as situações em que os doentes pagassem o seu tratamento, justificando que, sem a introdução de medidas de ,,racionamento", a qualidade dos cuidados prestados pelo SNS se deterioraria.

Pinto Balsemão (PB) reforçou a posição dos dois anteriores intervenientes, afirmando que, quanto mais tarde fossem implementadas essas restrições, pior seria.

Face ao descrito, o Colégio de Nefrologia da Ordem dos Médicos vê-se na contingência de esclarecer o seguinte:

1. Dos cerca de 10.000 doentes em hemodiálise crónica em Portugal no final de 2009, mais de 50% tinham idade superior a 65 anos. No ano de 2010, iniciaram tratamento 2.500 doentes, 60% dos quais se encontravam nessa faixa etária.

2. Não há dados disponíveis relativos ao grupo etário superior a 70 anos. Contudo, face aos dados atrás referidos, não erraremos muito (e se errarmos será por defeito) ao afirmar que, no início de 2010, se encontravam em hemodiálise regular perto de 2.500 doentes com mais de 70 anos de idade e que, no decorrer desse ano, iniciaram tratamento outros 800.

3. Em poucos minutos e em "julgamento sumário", foram ali "condenados" à morte perto de 3.300 cidadãos cuja única "culpa" é a de terem mais de 70 anos de idade e sofrerem de insuficiência renal. E de nada teriam servido os argumentos de que descontaram para a "segurança social" durante toda uma vida de trabalho, que a condenação tinha como única intenção proteger a ,,população activa" que ainda não prestara contribuição equivalente à que eles já haviam prestado e que essa condenação contrariava os apregoados fundamentos de um Estado social e de uma Sociedade solidária. E mais: que a sentença proferida feria gravemente disposições da própria Constituição da República Portuguesa onde expressamente se afirma que todos têm direito à protecção da saúde e que incumbe prioritariamente ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina, com particular destaque para a protecção da infância, da juventude e da velhice. Nem sequer seriam colhidos como bons e decisivos os seguintes argumentos: Primeiro, que é contraditório, por um lado o júri congratular-se com o aumento de esperança de vida da população resultante dos avanços médicos e, por outro lado, negar aos idosos a possibilidade de recorrerem a técnicas terapêuticas tornadas acessíveis por esses avanços; Segundo, não se entende que, para preservar a qualidade do SNS, se recorra à recusa arbitrária de acesso de um grupo etário a determinados tratamentos. Não seria isso a mais flagrante falência do SNS e a negação da sua essência?

4. MFL, sensível à argumentação apresentada, condescenderia em facultar o tratamento aos idosos que o pagassem. A defesa, de imediato, teria questionado o emérito júri se tinha conhecimento sobre o custo do tratamento - que é de € 24.400 por ano. Se sabia que apenas 27% dos agregados familiares apresentam um rendimento bruto anual superior a € 27.500 (PorData) e que, portanto, seria presumível que apenas 900 desses doentes pertencessem a famílias com hipotética capacidade económica para assegurar o tratamento e, mesmo assim, à custa de enormes e insuportáveis sacrifícios para o agregado - abrangendo a alimentação, a educação, a residência, a higiene, o vestuário, etc., etc..

5. Faltou, ainda, ao ilustríssimo júri ouvir quem sabe sobre o assunto. Qualquer dos muitos nefrologistas com experiência feita de vários anos de prática e do seguimento de alguns milhares de doentes em hemodiálise o teria esclarecido que a qualidade e a esperança de vida nos doentes com idade superior a 70 anos que iniciam ou se encontram em hemodiálise justificam plenamente, na esmagadora maioria dos casos, o seu tratamento. Tê-lo-ia, ainda, esclarecido que aqueles dois parâmetros - qualidade e quantidade de vida expectáveis - são sempre ponderados para que, face a cada doente com sua específica situação clínica e em seu benefício, se tome a decisão de propor, ou não, determinada terapêutica, designadamente as que se revestem de relevante risco, de potencial sofrimento e que são onerosas, como é o caso da hemodiálise. Esta atitude é sistemática, não sendo a idade do doente mais do que um mero (e, geralmente dos menos relevantes) aspectos a serem considerados para a tomada de decisão.

6. É, assim, por razões de carácter técnico, ético-profissional e ético-social, bem como na prossecução do espírito e da letra de nobres e fundamentais princípios enunciados da nossa Constituição, que nos opomos à implementação de medidas de ,,racionamento" na saúde, designadamente às que recorram à idade como critério decisório.

7. E opor-nos-emos enquanto houver tanto por fazer em termos de ,,racionalização" na saúde e, sobretudo, enquanto houver tanto por fazer em termos de ,,racionalização" e, até, de ,,racionamento" em áreas em que o empenhamento do Estado não seja, como o é para a saúde, prioritário.

8. Solicitamos, pelos motivos apresentados, que o assunto seja objecto de nova apreciação no programa ContraCorrente, apelando aos intervenientes que não nos proponham uma sociedade geronticida.

Com os melhores cumprimentos,

Pel'O Conselho Directivo

do Colégio de Especialidade de Nefrologia da Ordem dos Médicos

O Presidente
João Ribeiro dos Santos
AGUARDEMOS ESTE DEBATE SOBRE UM TEMA TÃO IMPORTANTE

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