segunda-feira, 27 de novembro de 2017




Infelizmente este artigo continua muito actual, ainda nada foi mudado





O  ZÉ*

“Onda de frio em Portugal” noticiava a televisão. Isto é que é frio, resmungava o Zé, habituado a temperaturas de 10 graus negativos na sua terra natal e com pouca roupa para o agasalho, aquecendo-se com um copo de aguardente, apesar dos seus dez anos de idade, quando acompanhava o pai no trabalho do campo, mesmo quando no inverno não havia muito que fazer.
“Desculpa de mau pagador para justificar o aumento de mortes, neste mês de Janeiro de 2015, mais mil mortes que no ano anterior, e oito nos serviços de urgência dos hospitais”, dizia entredentes o Zé.
Frio e calor conhecia ele quando teve de ir trabalhar nas minas da Urgeiriça. Comer uma sardinha no pão e sopas de cavalo cansado todos os dias não era vida… Aí deu cabo dos pulmões, porque a saúde pública era coisa dos livros. Um dia, um médico viu-o à radioscopia e disse: Zé procura outro modo de vida antes que a mina dê cabo de ti.
Então chegou o dia de ir às sortes e embarcar para a Guiné para combater os turras.
Veio de lá desfeito. Nunca tinha visto homens morrerem ao seu lado e nunca tinha morto ninguém. Calor não faltava! Quando deu baixa ao hospital militar, ficou a saber que tinha apanhado a sífilis em Lisboa e as sezões em África. Terminado o seu contributo patriótico ficou de novo sem nada. Casou. A Maria teve cinco filhos, alguns, sabe-se lá como nasceram: um veio atravessado e foi o cabo dos trabalhos. O dinheiro era pouco e resolveu emigrar.
Que frio de rachar! Até os ossos lhe doíam nos bidonvilles de Paris e mais tarde nas montanhas da Suíça.
O Zé regressou com algum dinheiro que angariou lá fora, mais uma pequena pensão. Riu e chorou com o 25 de Abril.
Agora queria descansar e ser tratado com dignidade quando está doente e recorre aos hospitais e sobretudo não queria morrer sozinho num corredor de um hospital.
O Serviço Nacional de Saúde, obra dos profissionais de saúde, conseguiu ganhos em saúde como nunca se tinham atingido em Portugal. Basta comparar indicadores como as taxas de mortalidade infantil (77,5%o em 1960 per 2,9%o em 2013) e o aumento da esperança de vida à nascença que agora se situa ligeiramente abaixo da média da OCDE. Contudo, se considerarmos a esperança de vida saudável, isto é sem doenças crónicas, o país encontra-se muito abaixo da média da OCDE.
A Maria e o Zé não querem morrer sozinhos - os filhos estão todos no estrangeiro - no corredor de um hospital.
Temos obrigação, perante os Zés e Marias deste país, de exigir uma política de Saúde correta, com a implementação de uma estratégia que corresponda às necessidades de toda a nossa população, incluindo o milhão e tal de idosos.
Não é de espantar que os nossos e Zés e Marias, agora com 76 anos, sofram de várias doenças, consequência da vida difícil que levaram.
As leis do mercado não funcionam na Saúde. O Estado tem que intervir, e bastante, se quer cumprir o que ficou inscrito na Constituição.
Onde está a rede domiciliária de apoio? Quem a controla? Onde está a rede de cuidados continuados? Porque se reduziu o número de camas hospitalares? Porque só agora deixam os hospitais contratarem diretamente profissionais de saúde (auxiliares, enfermeiros e médicos)?
E o reforço nas urgências, que poderia ser prestado pelos médicos reformados numa situação de emergência, porque é que só agora se vai legislar?
Este ministro, na sua obsessão de cortes nas despesas e nas medidas de austeridade, que ultrapassaram as exigidas pela TróiKa, como o congelamento de salários e a redução das despesas em horas extraordinárias, é o responsável pelo caos nas urgências deste país que não aguentam uma baixa de temperatura térmica e uma “epidemia de gripe”.

O Zé e a Maria exigem: senhor ministro demita-se !

*Artigo Publicado no Público em Janeiro de 2015

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