sexta-feira, 14 de agosto de 2020

MARY MALLON

 

MARY MALON

A maior quarentena da história ou os portadores sãos

 

A particularidade do SARS-CoV-2 consiste no facto das pessoas assintomáticas que contraíram o vírus poderem ser contagiosas. Segundo o estado da arte, ainda não se sabe porque é que há assintomáticos que contagiam várias pessoas e outros que não têm, felizmente, essa capacidade.

A história da medicina fala-nos de um caso raro e curioso, que nada tem a ver com um vírus, mas com uma bactéria, a Salmonela Typhi.

Corria o início dos anos 80, do século XIX, prosseguia na Irlanda a emigração para os Estados Unidos, em consequência da grande fome, que ficou conhecida como a guerra da batata*, em que a causa próxima foi uma doença provocada por um espécie de fungo que contaminou grande parte da produção deste tubérculo.

A Irlanda, país rural, vivia à custa desta monocultura que era obrigada a exportar grandes quantidades para o Reino Unido, ficando dependente deste como uma verdadeira colónia do British Empire.

O período da grande fome na Irlanda (1845-1849) acarretou a morte a um milhão de pessoas e, apesar deste drama, a ajuda inglesa foi nula.

A administração dos Whig**, durante o governo de Lord John Russel, mantem a sua crença que o mercado proveria os alimentos necessários, mas ao mesmo tempo ignorando as exportações de alimentos para a Inglaterra. E ainda há quem diga que não se deve diabolizar o mercado.

No ano de 1883, Mary Mallon, ainda adolescente, parte num navio para os Estados Unidos com centenas de emigrantes irlandeses, fugindo da fome e atraída pelo american dreams.

Chega à ilha de Ellis*** e como o posto de exame dos imigrantes só começou a funcionar em 1892 - o que de pouco serviria pois era assintomática - começou logo a trabalhar em Nova Iorque como empregada doméstica, exercendo a função de cozinheira entre 1900  e 1907. Trabalhou em sete casas diferentes e, neste período, apareceram cerca de 30 pessoas com a Salmonela Typhi sem explicação plausível, pois a febre tifoide está associada a baixos níveis socioeconómicos, principalmente em regiões com precárias condições de saneamento básico e higiene pessoal. 

Mary só trabalhava em casas da alta burguesia nova-iorquina, onde as condições de higiene não levantavam suspeitas. Contudo, houve um caso fatal de uma lavadeira que trabalhava na mesma casa em que ela trabalhava, em Manhattan. As autoridades de saúde começaram a atribuir o surto a água ou comida contaminada. O pânico começou a instalar-se em Nova Iorque e Long Island com a propagação do surto de febre tifoide.

Boa cozinheira, Mary trabalhou em muitas casas ricas, tendo infectado cerca de 53 membros da alta sociedade. Mais parecia uma vingança de emigrante! Trabalhou ainda na pequena cidade de Mamaronek e logo começaram a aparecer os primeiros casos de febre tifoide.

A jovem segue para Manhattan para trabalhar na casa de um banqueiro de nome Charles Warren, mas como a epidemia se alastrava, este aluga uma casa em Long Island e leva consigo a cozinheira. Começam de imediato a aparecer pessoas com sintomas.

O banqueiro, preocupado, contrata um epidemiologista, George Soper, que após uma investigação minuciosa, comparável aos melhores detectives, descobre a origem dos surtos: Mary Mallon, a cozinheira.

Desconfiada, reação lógica de uma emigrante, recusou fazer testes e atacou com um garfo o pobre Soper. Dificilmente foi dominada pela Policia da qual se defendeu com murros e pontapés. Mary sentia-se perseguida ilegalmente.

Testando positivo, é presa, e confessa desconhecer que tinha de lavar as mãos para cozinhar.  A importância de lavar as mãos!!

Constatada a situação, foi isolada pelas autoridades sanitárias num hospital situado na ilha de North Broter, no Riverside,(foto2) tendo tido alta após três anos, com a condição de não voltar a manipular alimentos.

Entretanto, em 1915, Mary muda de nome e volta para o fogão, reiniciando a difusão da doença em mais 25 pessoas.

Por conta disso, Mary foi confinada numa "quarentena" que durou o resto da sua vida. Faleceu em 1938, aos 69 anos, vítima de pneumonia.

 Mary Mallon trabalhou em múltiplas casas, com o seu nome e com identidades falsas mais tarde, não se conhecendo a quantidade de vítimas que fez. Algumas fontes apontam para 50 pessoas, mas nos registos de Soper os infectados chegam a 122.

A autópsia revelou que ela continuava uma potencial irradiadora da febre tifoide. Este caso tornou-se famoso em Nova Iorque, com grande destaque nos média, chegando mesmo a sua vida a ser editada em banda desenhada na Marvel comics,(foto 1) aparecendo como uma personagem fictícia: Mary Typfoid, Bloody Mary e mais recentemente Mutante Zero.

*https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_fome_de_1845%E2%80%931849_na_Irlanda

**O Whig Party era o partido que reunia as tendências liberais no Reino Unido, e contrapunha-se ao Tory Party, de linha conservadora. Mais tarde deu origem aos partidos Trabalhista e Liberal.

*** A ilha de Ellis foi a partir de 1892 a entrada de emigrantes chegados à baia de Houston onde ficavam de quarentena aguardando exame médico. No local, hoje existe um museu com o registo de todos os emigrantes chegados por navio.

5 comentários:

  1. Muito interessante e pertinente nesta fase que estamos a viver. Aprendemos sempre muito com os teus textos.

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  2. as pequenas histórias das doenças transmissíveis mais na ordem do dia antes do tsunami da doença crónica. Agora, diria que desde o ébola e a gripe pandémica de novo na ordem do dia.

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