sexta-feira, 3 de junho de 2011

As propostas da troika para a saúde

ARTIGO A SER PUBLICADO NA REVISTA DA ORDEM DOS MEDICOS



A LESTE E A OESTE NADA DE NOVO



“Effective treatments should be free”

A. Cochrane



As medidas anunciadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Comissão Europeia e Fundo Europeu de Estabilização Financeira sobre saúde são confrangedoras e vêem ao arrepio das propostas recentes inscritas no Relatório Mundial da Saúde, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

A filosofia dominante, propagada por “doutos” economistas, é culpar os cidadãos pela crise financeira, por se terem deixado entusiasmar pelas ofertas de crédito.

Neste sentido, assistimos também aos responsáveis pela política de saúde a espalhar que a culpa do despesismo na saúde é dos utentes que fogem às taxas moderadoras, burlam as comparticipações nos medicamentos e nos transportes, etc…. E assim, escondem a sua incompetência e acordam com a troika medidas ainda mais gravosas para os doentes, como são os cortes de 2/3 nos reembolsos de IRS com despesas de saúde.

Esquecem que os portugueses são, na Europa, os que mais dinheiro reservam para a saúde no total das despesas de consumo. O peso da saúde, segundo estatísticas do Índice de Preços no Consumidor do Eurostat, foi de 8% em 2010, o maior nos países da União Europeia.

Entre nós, os defensores de um Serviço Nacional de Saúde Constitucional: -universal, geral e tendencialmente gratuito - não podem estar de acordo com estas medidas e é sua missão combatê-las.

Antes de analisarmos as imposições feitas pela troika com o objectivo de melhorar a eficiência do nosso sistema de saúde, vejamos como está o nosso Serviço Nacional de Saúde.

Um estudo actual da OCDE sobre sistemas de saúde mostra que a despesa pública portuguesa em saúde não tem grandes desperdícios, que será difícil ser muito mais eficiente e que para os ganhos em saúde da população, os gastos até nem terão disparado.
Ora esta não é a visão da troika. Já nos habituaram que entre economistas não há consenso, e por isso propõem um corte de 550 milhões de euros até 2013 nas despesas do SNS. Só nos hospitais a fatia ascende a 200 milhões de euros nos próximos dois anos.

No essencial, as propostas conduzem a cortes substanciais dos subsistemas de saúde, incluindo a ADSE, cortes nas aquisições dos hospitais, cortes nas comparticipações dos medicamentos, cortes nos salários dos trabalhadores da saúde em geral. O financiamento será devido substancialmente à custa do aumento das taxas moderadoras.

Outras medidas como prescrição de genéricos, compras centralizadas, aposta nos serviços de saúde primários (a Declaração de Alma-Ata tem mais de 30 anos), reorganização hospitalar, transportes dos pacientes são há muito propostas pelos médicos e conhecidas dos nossos executores. Basta reler os programas de candidatura a Bastonário para este triénio.

Estes senhores não tiveram em conta as sábias palavras da Directora Geral da Organização Mundial da Saúde, Margaret Chan : “ Antes de cortarmos nas despesas em saúde, procuremos primeiro as oportunidades para aumentar a eficiência”

Muito do desperdício dos sistemas de saúde (20 a 40%) deve-se a ineficiência.

Se estas alterações forem implementadas, o princípio da cobertura universal inscrito na nossa Constituição irá ser ofendido. O aumento das taxas moderadoras é identificado no relatório mundial da saúde como sendo de longe o maior obstáculo ao progresso desta medida.

Como se costuma dizer, estes senhores em três penadas atiraram o nosso Serviço Nacional de Saúde, geral, universal e tendencialmente gratuito para as ortigas.


A resolução 58.33 da Assembleia Mundial da Saúde de 2005 diz que todos devem ter acesso a serviços de saúde sem necessidade de sacrifícios financeiros, e propõe:

1. Obter o máximo rendimento das tecnologias e serviços de saúde;
2. Motivar os trabalhadores de saúde;
3. Melhorar a eficiência hospitalar;
4. Obter os cuidados correctos no primeiro contacto, por redução do erro médico;
5. Eliminar o desperdício e a corrupção;
6. Avaliar de modo crítico que serviços são necessários.

Já tive oportunidade de explicar o meu ponto de vista contrariando o argumento utilizado que os progressos da medicina implicam necessariamente um aumento de despesas.
Inúmeros progressos da medicina reduziram os custos hospitalares: aparelhos de diálise mais perfeitos, necessitando de menos vigilância dos técnicos e de manutenção; operações cardíacas muito dispendiosas às coronárias são muitas vezes substituídas pelo cateterismo percutâneo realizado em ambulatório; a cirurgia minimamente invasiva reduziu drasticamente o tempo de hospitalização; a indústria farmacêutica também contribuiu com a descoberta de novos medicamentos como os anti-ulcerosos, que fizeram quase desaparecer a úlcera duodenal perfurada das urgências hospitalares.

Não é certamente com cortes salariais que se vai motivar os trabalhadores da saúde. Aliás pode perguntar-se onde estão os aumentos dos últimos dez anos?

A eficiência hospitalar passa só pela modificação da organização interna e governação do SNS. Onde pára o documento do Ministério da Saúde:” A Organização Interna e a Governação dos Hospitais”?

É fundamental dar combate aos chamados “gastos implícitos” como aqueles que são feitos por exemplo em medicamentos comprados e não consumidos. Este desperdício é causado por inúmeros factores, tais como uma má prescrição, condicionamento dos medicamentos, não utilização pelo doente,etc. A mesma constatação pode ser feita na duplicação ou na realização inútil de exames de laboratório ou de imagem. Para quando a circulação da informação clínica electrónica?

A constatação de que os aumentos dos custos de medicina são inelutáveis, leva os decisores a propor modelos económicos tomando em conta a idade ou uma outra característica de um membro da nossa sociedade para recusar-lhe certos cuidados de saúde. Temos obrigação de nos opor e melhorarmos o nosso sistema organizacional.
É inadmissível que sejam os doentes um dia a serem as vítimas da nossa própria falta de organização e coordenação.
Gostaria de ter visto no documento da troika medidas de combate à corrupção que também atinge a saúde, como muito bem diz a Assembleia Mundial da Saúde, reunida em 2005.
Cito:
“A crescente globalização e a localização off shore de activos empresariais – frequentemente em paraísos fiscais – aumenta o potencial de perda de receita fiscal, seja por lacunas não intencionais na legislação seja através do uso ilegal de contas individuais ocultas. Todos os países da OCDE aceitam agora o Artigo 26 da convenção fiscal modelo da OCDE, que cobre a troca de informação, e mais de 360 acordos de troca de informação sobre impostos foram assinados . Espera-se que as empresas globais e as instituições financeiras que as servem sejam mais transparentes nas suas transacções futuras, e que os países que as acolhem obtenham uma fatia mais justa das receitas fiscais”.
É senso comum que é na despesa em medicamentos o maior gasto dos sistemas de saúde e a maioria dos países tenta reduzir esta despesa pela introdução da venda de genéricos.
Este foi um dos temas muito debatido durante a última campanha para Bastonário da Ordem dos Médicos, mas julgo importante voltar ao assunto.
Os médicos pensam a terapêutica como parte integrante do acto médico e o seu raciocínio é feito tendo por base a disponibilidade dos princípios activos conhecidos e das formas de apresentação aplicáveis.
Assim, é correcto dizer-se que os médicos, numa primeira fase do processo terapêutico, sempre prescreveram e prescrevem por Denominação Comum Internacional.
A segunda fase do processo terapêutico, da dispensa dos medicamentos prescritos por entidade terceira exterior à classe médica, tem contextos diferentes quer se trate do domínio hospitalar ou institucional ou do ambulatório.
No caso da prescrição hospitalar por Denominação Comum Internacional (DCI), cabe aos serviços farmacêuticos disponibilizar os medicamentos adquiridos normalmente a um só produtor ou fornecedor e, como tal, não se coloca qualquer divergência ou grau de liberdade. Os médicos confiam na boa escolha e dispensa dos serviços farmacêuticos.
Quando se trata da medicina do ambulatório, o mercado da dispensa de medicamentos é muito vasto e para cada princípio activo podem existir medicamentos de marca e ditos genéricos também de marca ou de fornecedor.

Cabe ao médico indicar o medicamento na forma que é apresentado de marca ou genérico de fornecedor, qualquer deles específico nominativamente. É no acto médico que a liberdade de escolha participada do doente assume a sua plenitude. São raros os casos em que os medicamentos de marca ou genéricos são únicos para um dado DCI. Não existem pois no ambulatório genérico universal. Terá de haver uma escolha. Cabe ao médico e ao seu doente fazê-la no tempo e lugar próprios.
A confusão, o barulho dos negócios e outros interesses extra saúde entram em acção quando se coloca no mercado diferentes medicamentos com o mesmo princípio activo e apresentação a preços diferentes. Aqui aparecem os proponentes da limitação da iniciativa terapêutica dos médicos. Uns, directos, dizem que tal poder de escolha dos medicamentos deve pertencer às farmácias e à sua associação. Outros, mais elaborados, dizem que deve ser dada liberdade aos doentes com a ajuda dos farmacêuticos. E outros ainda consideram que o preço deve ser um factor penalizador da escolha ou que os médicos quando quiserem participar no processo de escolha terão de o fazer com justificação técnica precisa e fundamentada.

O que ninguém falou foi da introdução dos medicamentos genéricos universais adquiridos ou contratualizados pelo Serviço Nacional de Saúde. E porque não todos os medicamentos, genéricos ou de marca, a exemplo do que se faz na Nova Zelândia, Canadá e parte da Bélgica. Este modelo - que ficou conhecido como o modelo kiwi, pela Nova Zelândia ser um grande produtor deste fruto - consiste na abertura de concurso, pelas autoridades, às empresas que propõem medicamentos equivalentes e a comparticipação daqueles que fizerem a melhor oferta.

Sem comentários:

Enviar um comentário