quinta-feira, 9 de junho de 2011

Carta de um Nobel da Paz a Barack Obama

Carta de um Nobel da Paz a Barack Obama


Adolfo Pérez Esquivel


Estimado Barack, ao dirigir-te esta carta o faço fraternalmente para,

ao mesmo tempo, expressar-te a preocupação e indignação de ver como a

destruição e a morte semeada em vários países, em nome da ?liberdade e

da democracia?, duas palavras prostituídas e esvaziadas de conteúdo,

terminam justificando o assassinato que é festejado como se tratasse de um

acontecimento desportivo.

Indignação pela atitude de setores da população dos Estados Unidos, de

chefes de Estado europeus e de outros países que saíram a apoiar o

assassinato de Bin Laden, ordenado por teu governo e tua complacência em

nome de uma suposta justiça. Não procuraram detê-lo e julgá-lo pelos

crimes supostamente cometidos, o que gera maior dúvida: o objetivo foi

assassiná-lo.

Os mortos não falam e o medo do justiçado, que poderia dizer coisas

inconvenientes para os EUA, resultou no assassinato e na tentativa de

assegurar que morto o cão, terminou a raiva?, sem levar em conta que

não fazem outra coisa que incrementá-la.

Quando te outorgaram o Prêmio Nobel da Paz, do qual somos depositários,

enviei-te uma carta que dizia: Barack, me surpreendeu muito que tenham te

outorgado o Nobel da Paz, mas agora que o recebeste, deves colocá-lo ao

serviço da paz entre os povos; tens toda a possibilidade de fazê-lo, de

terminar as guerras e começar a reverter a situação que viveu teu país e o mundo?

No entanto, ao invés disso, incrementaste o ódio e traiste os

princípios assumidos na campanha eleitoral frente ao teu povo, como terminar com as

guerras no Afeganistão e no Iraque e fechar as prisões em Guantánamo e

Abu Graib no Iraque. Não fizeste nada disso. Pelo contrário, decidiste começar

outra guerra contra a Líbia, apoiada pela OTAN e por uma vergonhosa resolução

das Nações Unidas. Esse alto organismo, apequenado e sem pensamento próprio,

perdeu o rumo e está submetido às veleidades e interesses das potências

dominantes.
A base fundacional da ONU é a defesa e promoção da paz e da dignidade

entre os povos. Seu preâmbulo diz: Nós os povos do mundo...?, hoje ausentes

deste alto organismo.

Quero recordar um místico e mestre que tem uma grande influência em

minha vida, o monge trapense da Abadia de Getsemani, em Kentucky, Tomás

Merton, que diz: a maior necessidade de nosso tempo é limpar a enorme massa de

lixo mental e emocional que entope nossas mentes e converte toda vida

política e social em uma enfermidade de massas. Sem essa limpeza doméstica não

podemos começar a ver. E se não vemos não podemos pensar?.

Eras muito jovem, Barack, durante a guerra do Vietname e talvez não

lembres a luta do povo norteamericano para opor-se à guerra. Os mortos, feridos

e mutilados no Vietname até o dia de hoje sofrem as consequências dessa

guerra.

Tomás Merton dizia, frente a um carimbo do Correio que acabava de

chegar, The U.S. Army, key to Peace? (O Exército dos EUA, chave da paz):

Nenhum exército é chave da paz. Nenhuma nação tem a chave de nada que não seja

a guerra. O poder não tem nada a ver com paz. Quanto mais os homens

aumentam o poder militar, mais violam e destroem a paz?.

Acompanhei e compartilhei com os veteranos da guerra do Vietname, em

particular Brian Wilson e seus companheiros que foram vítimas dessa

guerra e de todas as guerras.

A vida tem esse não sei o quê do imprevisto e surpreendente fragrância e

beleza que Deus nos deu para toda a humanidade e que devemos proteger

para deixar às gerações futuras uma vida mais justa e fraterna,

reestabelecendo o equilíbrio com a Mãe Terra.
Se não reagirmos para mudar a situação atual de soberba suicida que está

arrastando os povos a abismos profundos onde morre a esperança, será

difícil sair e ver a luz; a humanidade merece um destino melhor. Tu sabes que a

esperança é como o lótus que cresce no barro e floresce em todo seu

esplendor mostrando sua beleza.

Leopoldo Marechal, esse grande escritor argentino, dizia que: do

labirinto, se sai por cima?

E creio, Barack, que depois de seguir tua rota errando caminhos,

encontras-te num labirinto sem poder encontrar a saída e te enterra cada

vez mais na violência, na incerteza, devorado pelo poder da dominação,

arrastado pelas grandes corporações, pelo complexo industrial militar, e acreditas

ter todo o poder e que o mundo está aos pés dos EUA porque impõem a força

das armas e invade países com total impunidade. É uma realidade dolorosa,

mas também existe a resistência dos povos que não claudicam frente aos

poderosos.

As atrocidades cometidas por teu país no mundo são tão grandes que

dariam assunto para muita conversa. Isso é um desafio para os historiadores que

deverão investigar e saber dos comportamentos, políticas, grandezas e

mesquinharias que levaram os EUA à monocultura das mentes que não

permite ver outras realidades.
A Bin Laden, suposto autor ideológico do ataque às torres gémeas, o

identificam como o Satã encarnado que aterrorizava o mundo e a

propaganda do teu governo o apontava como o eixo do mal?. Isso serviu de pretexto

para declarar as guerras desejadas que o complexo industrial militar

necessitava para vender seus produtos de morte.

Sabe que investigadores do trágico 11 de Setembro assinalam que o

atentado teve muito de auto golpe? como o avião contra o Pentágono e o

esvaziamento prévios de escritórios das torres; atentado que deu motivo

para desatar a guerra contra o Iraque e o Afeganistão, argumentando com a

mentira e a soberba do poder que estão fazendo isso para salvar o povo, em nome

da liberdade e defesa da democracia?, com o cinismo de dizer que a morte

de mulheres e crianças são danos colaterais?. Vivi isso no Iraque, em

Bagdad, com os bombardeios na cidade, no hospital pediátrico e no refúgio de

crianças que foram vítimas desses danos colaterais?

A palavra é esvaziada de valores e conteúdo, razão pela qual chamas o

assassinato de morte e que, por fim, os EUA mataram? Bin Laden. Não

trato de justificá-lo sob nenhum conceito, sou contra todas as formas de

terrorismo, desde a praticada por esses grupos armados até o terrorismo

de Estado que o teu país exerce em diversas partes do mundo apoiando

ditadores, impondo bases militares e intervenção armada, exercendo a violência para

manter-se pelo terror no eixo do poder mundial. Há um só eixo do mal?

Como o chamarias?

Será que é por esse motivo que o povo dos EUA vive com tanto medo de

represálias daqueles que chamam de eixo do mal? É simplismo e

hipocrisia querer justificar o injustificável.

A Paz é uma dinâmica de vida nas relações entre as pessoas e os povos;

é um desafio à consciência da humanidade, seu caminho é trabalhoso,

quotidiano e portador de esperança, onde os povos são construtores de sua própria

vida e de sua própria história. A Paz não é dada de presente, ela se constrói e

isso é o que te falta meu caro, coragem para assumir a responsabilidade

histórica com teu povo e a humanidade.

Não podes viver no labirinto do medo e da dominação daqueles que

governam os EUA, desconhecendo os tratados internacionais, os pactos e protocolos,

de governos que assinam, mas não ratificam nada e não cumprem nenhum dos

acordos, mas pretendem falar em nome da liberdade e do direito. Como

podes falar de Paz se não queres assumir nenhum compromisso, a não ser com os

interesses de teu país?

Como podes falar da liberdade quanto tens na prisão pessoas inocentes em

Guantánamo, nos EUA e nas prisões do Iraque, como a de Abu Graib e do

Afeganistão?

Como podes falar de direitos humanos e da dignidade dos povos quando

violas ambos permanentemente e bloqueias quem não compartilha tua ideologia,

obrigando-o a suportar teus abusos?
Como podes enviar forças militares ao Haiti, depois do terremoto

devastador, e não ajuda humanitária a esse povo sofrido?

Como podes falar de liberdade quando massacras povos no Oriente Médio e

propaga guerras e tortura, em conflitos intermináveis que sangram

palestinos e israelenses?

Barack, olha para cima de teu labirinto e poderás encontrar a estrela

para te guiar, ainda que se saiba que nunca poderemos alcançá-la, como bem diz Eduardo

Galeano. Busca a coerência entre o que dizes e fazes, essa é a única forma

de não perder o rumo. É um desafio da vida.

O Nobel da Paz é um instrumento ao serviço dos povos, nunca para a

vaidade pessoal.

Te desejo muita força e esperança e esperamos que tenhas a coragem de

corrigir o caminho e encontrar a sabedoria da Paz.


Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz 1980.


Buenos Aires, 5 de maio de 2011

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