segunda-feira, 15 de abril de 2013

REGRESSO AO PASSADO


        SERVIÇO NACIONAL DE SAUDE
        O regresso ao passado




A ofensiva contra o Serviço Nacional de Saúde pelas forças conservadoras - agora dirigida pela equipa do ministro Paulo Macedo - tem sido uma constante. A desculpa inventada é a falta de sustentabilidade do sistema.

A destruição do SNS significará o fim do sonho, acarinhado por muitos profissionais de saúde e pelo povo português, do direito à saúde.

A aprovação da Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde na Assembleia da República, em Outubro de 1978, obra da luta prolongada dos médicos progressistas com o apoio das populações, foi o começo da realização desse sonho.

Esta lei, que ficou conhecida pela lei “Arnaut”, venceu os projetos alternativos da direita, que defendiam a medicina convencionada e o seguro-doença. Sistemas virados para uma medicina individualista de cariz curativo, ignorando os cuidados primários, a prevenção da doença e a promoção da saúde.

Os atuais partidos do governo (PSD e CDS) têm inscrito no seu ADN a filosofia medievo-fascista do chamado “ Estado Novo”, tão bem definida neste texto da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) em Outubro de 1969.
«...a saúde e a proteção sanitária foram montadas e mantidas em Portugal não como um direito que assistia aos cidadãos – o direito à saúde – mas como um acto decorrente da caridade das consciências, consubstanciado no célebre “slogan” que há 15 anos fazia furor “os que podem aos que precisam” e sobre o qual se pretendia montar a assistência e organização hospitalar do país»

No mesmo programa da CDE, em 1969, no fim do capítulo “Os problemas da saúde”, propunha-se já a criação de um Serviço Nacional de Saúde.

A política de saúde prestada pela Federação das Caixas de Previdência redundou num fracasso estrondoso. Portugal atingiu os piores níveis de saúde da Europa, onde coexistiam doenças do terceiro mundo, como o Kawshiorkor e outras formas de malnutrição,  a par das doenças de países industrializados.

A mortalidade infantil era de 44,83 por mil e atingia no distrito de Vila Real o número de 90,99 por mil nados vivos, as doenças infeciosas e parasitárias abrangiam 23,5 por cem pessoas por mil habitantes, a esperança de vida à nascença era para os homens de 64,7 e para as mulheres de 71,1. (in Subsídios para o lançamento das bases do SERVIÇO NACIONAL DE SAÙDE, Nov. 1974)

Assim andava o país dos brandos costumes e dos governos “autoritários”, como agora certos historiadores apelidam a Ditadura.

Sem pretensões de querer fazer história, pois não é esse o intuito deste artigo, irei salientar apenas alguns factos: os avanços que tinham sido conseguidos nos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX, nomeadamente no campo da saúde pública, sofreram graves retrocessos com o regime fascista instaurado em 1926 no nosso país. Os seguros sociais obrigatórios tinham sido instituídos em 1919, enquanto, por exemplo a França, só os adotou alguns anos mais tarde.
- Na década de 50 e 60, os médicos internos não auferiam qualquer remuneração e, durante algum tempo, ainda tinham de pagar uma quantia para terem direito à formação, e mesmo os médicos do quadro recebiam aquilo a que se chamava gratificação simbólica. Várias comissões de médicos pediram ao longo dos anos o estabelecimento de uma remuneração condigna, o que sempre lhes foi negada, com o argumento que podiam recorrer à clinica livre. Nessa altura, a saúde era tutelada pelo Ministério do Interior, o que só por si diz tudo e explica como o fascismo encarava a saúde dos portugueses.
- Em 10 de Dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração dos Direitos do Homem.
No seu parágrafo 25 pode ler-se: “Cada pessoa tem o direito a um modo de vida que assegure a sua saúde pessoal e bem-estar, assim como à sua família, incluindo a alimentação, vestuário, habitação, assistência médica e as necessárias garantias de uma assistência social. Tem o direito à segurança em caso de desemprego, invalidez, viuvez ou se perder os meios de subsistência por circunstâncias de que não é responsável.”
Um novo conceito é criado, mais tarde reafirmado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que define a saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças.


- A discussão, em Portugal, em finais dos anos 30, sobre a socialização ou estatização da medicina, instalou-se no meio médico e colheu vários argumentos prós e contra.
Inúmeros jornais de divulgação médica e mesmo revistas científicas,  nacionais e estrangeiras, nacional da medicina, Jornal do Médico, vol.10, pp. 65-66, 1947,V. Marques Guedes)
Os argumentos, ainda hoje utilizados, para criticar a medicina estatizada são os mesmos de há 70 anos: a liberdade de escolha do doente, o horror do médico-funcionário e a burocratização destruidora do estímulo financeiro.
- No pós- guerra aparecem na Europa, sobretudo nos países nórdicos e na Grã-Bretanha, medidas de nacionalização dos serviços médicos, sem a socialização dos meios de produção, entre as quais o Serviço Nacional de Saúde Britânico.
- Em Portugal, em 1939, o primeiro Centro de Saúde é constituído devido ao empenho de um grupo de enfermeiras de regresso do EUA e do Canadá, bolseiras da Fundação Rockefeller, onde finalizaram a sua formação, e à colaboração de médicos de saúde pública que convenceram os poderes públicos da época a iniciar a experiência piloto do Centro de Saúde de Lisboa.
Os apoios da Fundação Rockefeller a Portugal foram condicionados pelos seguintes princípios: Serviços técnicos dirigidos e desempenhados por pessoal devidamente especializado; Pessoal exclusivamente ocupado nesse trabalho, isto é em full-time; vencimento com suficiente largueza para atrair os melhores médicos e visitadoras, e para lhes garantir um nível de vida que os dispense de recorrer a outra qualquer ocupação ou emprego”.  Estes princípios foram aceites pelo director-geral de Saúde à época.
(In Acta Pediátrica Portuguesa 0873-9781/09/40-4/189, Centro de Saúde de Lisboa, Notas Históricas)
Esta experiência, que durou 10 anos, acabou abruptamente por ordem do ditador, com a expulsão da função pública de vários dos seus responsáveis.
Os Centros de Saúde só viriam a ser constituídos mais tarde, em 1971, com a reforma Gonçalves Ferreira, com 32 anos de atraso.

- A década de 50 é a de maior contestação à política de saúde do regime. Surge o Movimento dos Novos que se estendeu por todo o país e esteve na origem do Relatório sobre as Carreiras Médicas (1953-1961).
O regime fascista proibia a discussão de quaisquer temas políticos e a saúde era um deles. Assim, o debate sobre as carreiras médicas, discutido na Ordem dos Médicos, foi apresentado como um tema puramente socioprofissional.
Nesse âmbito,  grandes assembleias de médicos realizaram-se por todo o país, culminando com a aprovação do Relatório sobre as Carreira Médicas na Assembleia Geral Extraordinária de 17 de Junho de 1961.
A luta pela sua aplicação foi longa, apesar do apoio expresso de várias personalidades médicas afetas ao regime de então, e continuou durante muitos anos.

A esperança da conquista do direito à saúde renasceu então com o 25 de Abril de 1974.
Realizaram-se em todos os hospitais grandes assembleias de trabalhadores, elegeram-se comissões de gestão, criou-se o Secretariado Nacional dos Hospitais Centrais e Distritais, nasceu, por fim,  o Sindicato dos Médicos da Zona Sul. A Ordem dos Médicos passou a ter funções sindicais.

O sindicato promoveu reuniões, em Lisboa, com colegas acabados de chegar do exílio noutros países para dissertarem sobre os modelos de sistemas de saúde. Recordo-me, durante o ano de 1974, das conferências de Luís Bernardino, médico pediatra, sobre o National Health Sistem, e de Tito Seabra Diniz, psiquiatra, sobre o sistema de Saúde Soviético.

Nesse mesmo ano em Novembro, a Secretaria de Estado da Saúde publica  o chamado livro cinzento, Subsídios para o lançamento das bases do Serviço Nacional de Saúde, contestado no livro cor-de-rosa de Abílio Teixeira Mendes, Propostas Para um Plano de Emergência Nacional de Saúde em Janeiro do ano seguinte.

A partir de 1975, o serviço médico à periferia torna-se no primeiro fio da rede de cuidados de proximidade, dado que os centros de saúde eram ainda incipientes e de criação recente. Os jovens médicos e demais trabalhadores de saúde empenharam-se em transformar os índices sanitários do país, até então motivo de vergonha nacional, entre os melhores a nível mundial.
Como resultado de todas estas acções, a maioria através das suas estruturas representativas, a Assembleia da República aprovou a Lei do Serviço Nacional de Saúde, em 16 de Maio de 1978, e mais tarde da Lei 310/82 sobre as Carreiras Médicas.

Esta pequena dissertação histórica sobre a saúde em Portugal serve apenas para relembrar que os grandes avanços na saúde em Portugal surgiram quando os médicos e demais trabalhadores da saúde, com as suas organizações representativas, decidiram modificar o panorama da saúde. E conseguiram-no, erguendo um dos melhores serviços de saúde do Mundo. Isto sem retirar o mérito aos governantes António Arnaut, Mário Mendes e Paulo Mendo.

Eis senão quando um secretário de estado da Saúde descobriu que promover a saúde pública e os cuidados primários de saúde sai mais barato ao SNS, genial!
Não esquecer que foi na Conferência de Alma Ata, realizada pela OMS em 1978, que se concebeu uma política de cuidados de saúde primários.
Os países que basearam os seus serviços nacionais preferencialmente em medidas de saúde pública, higiene e prevenção, desenvolvendo em primeiro lugar os cuidados primários e continuados, muitas vezes em detrimento dos cuidados hospitalares ultra-especializados, possuem ,agora sistemas menos dispendiosos.

A defesa de uma política de cuidados primários de saúde, incluindo cuidados dentários, foi sempre preconizada pelos sectores progressistas dos trabalhadores da saúde, contra uma política hospitalocêntrica desenvolvida pelos partidos do arco da governação. 
O exemplo negativo mais flagrante situa-se no Ribatejo com a construção de cinco grandes hospitais num perímetro de 50 Km.
O atual governo continua a apoiar a privatização dos serviços de saúde, não só com as parcerias público/privadas, como diretamente através da ADSE com acordos com os hospitais privados.

Será que o douto secretário de Estado quer dar o pontapé de saída para os cuidados primários seletivos e a sua privatização, “a canasta básica”, proposta no relatório do FMI para Portugal ?

O Serviço Nacional de Saúde continua a ser uma medida politicamente moderna, socialmente avançada, cientificamente correcta e com provas dadas na efectividade e eficiência dos cuidados prestados, em particular nos ganhos de saúde alcançados, como escrevi em 2011 no meu programa de candidatura a bastonário da Ordem dos Médicos e que reafirmo.

O sucesso do SNS tornou o país e este ficou irreconhecível:
 -aumento da esperança de vida,
-diminuição espetacular da mortalidade infantil e das doenças infectocontagiosas.

No indicador global para os resultados em saúde, Portugal é actualmente, segundo dados da OCDE, o segundo país com melhor evolução entre 1970 e 2009.

A história da saúde no nosso país mostra à exaustão que temos ótimos técnicos em todas as áreas e estruturas representativas dos trabalhadores da saúde que poderiam ajudar o Sr. ministro a tomar as decisões acertadas para a sustentabilidade do SNS.

Infelizmente este governo, com a vinda da Troika, demitiu-se de pensar e de uma forma bacoca e saloia entregou os destinos do país a qualquer especialista estrangeiro.

A reforma do SNS, tendo em conta a sua sustentabilidade, está a ser pensada por uma comissão recentemente nomeada pelo ministro da Saúde e que deve apresentar a solução milagrosa em 2014, como se saísse o coelho do chapéu de um mágico.

Mais uma comissão de aconselhamento, apenas com dois funcionários do Estado e quatro do sector privado, e sem representantes dos Sindicatos e das Ordens do sector da saúde.
Sr. Ministro, o país está pobre de recursos, não gaste tanto dinheiro com as reuniões destas comissões com personalidades vindas de Amesterdão, Londres, Genebra, etc. porque com esta composição das comissões já sabemos quais vão ser os resultados: o Serviço Nacional de Saúde é insustentável e vamos voltar mais de 50 anos para trás, seguindo o velho slogan fascista “ os que podem aos que precisam”, para montar a assistência e organização hospitalar de Portugal.



Sem comentários:

Enviar um comentário