quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A QUALIDADE DA DEMOCRACIA

Este artigo saiu na semana médica e está publicado no blog do MAOM movimento alternativo à Ordem dos Medicos

A Qualidade da Democracia


O extenso editorial “O Preço da Nossa Liberdade”, saído no boletim da Ordem dos Médicos1 e assinado pelo actual presidente, mostra, além de muita presunção, o desrespeito para com os colegas que têm opiniões diferentes das dele.
A aceitação da crítica, a humildade e o respeito para com os outros é fundamental em Democracia.

No texto, o presidente vangloria-se de promover reuniões por todo o país, que finalizariam na chamada Assembleia-geral de Médicos, não deliberativa, a que alguém da mesa apelidou de brainstorming.

Contudo, os actuais Estatutos da Ordem não prevêem a existência desse órgão supremo do exercício da Democracia e, por esta razão, na reunião havida não se prepararam consensos nem se ouviram os médicos.

A obsessão em falar de Assembleia-geral de Médicos faz parte de uma prática de manipulação linguística que, de insistente que é, acaba por criar em qualquer indivíduo bem-intencionado um mundo mental deturpado.

Assim um “brainstorming” passa a chamar-se assembleia-geral, o oportunismo chama-se pragmatismo, o pobre chama-se carenciado ou pessoa de escassos recursos, a Ditadura chama-se II República, etc.…

Há cerca de dois séculos que procuramos melhorar a Democracia.
O nosso dever cívico, como cidadãos e médicos, é continuar a aperfeiçoá-la, alertando para os perigos de adulteramento, quer na sociedade em que vivemos quer nas associações a que pertencemos.

A definição de democracia, segundo Sir Henri Maine2, é uma forma particular de governo em que os governantes são simples agentes e mandatários dos governados e neste caso a censura é um direito, a origem da autoridade reside nos governados que a dão ou a retiram como julgam mais útil.

A crise da democracia é de carácter qualitativo e, já no século XIX, pensadores como Bemjamin Constant, em França, no fim do seu discurso no Athénée Royale de Paris em 1819, exortou os cidadãos a exercerem uma “ vigilância activa e constante” sobre os seus representantes e avisou: “O risco da moderna liberdade é que, absorvidos no gozo da nossa independência privada e na prossecução dos nossos interesses particulares, renunciemos com demasiada facilidade ao nosso direito de participação no poder político”.

Em Portugal, Magalhães Lima, no seu estudo sobre “A Democracia3”, publicado em 1888, escrevia, a propósito de eleições e democracia representativa: “(…) A história das eleições é conhecida. É sabido o que significa o alargamento do sufrágio como meio de alcançar uma justa distribuição do poder político. Há uma verdadeira capitalização política como a capitalização económica; desta resulta o agiota, daquela o empresário político, o nosso influente. A nação mais democrática do mundo, ou pelo menos apontada como tal, os Estados Unidos, é o melhor exemplo da significação que tem o direito de votar; ali o voto é uma mercancia como o algodão ou os cereais, o poder é para quem mais souber capitalizar (…)”.

Mais adiante, Magalhães Lima reflecte sobre a representatividade dos eleitos afirmando: “(…) O mandatário eleito pelos seus concidadãos por maioria de votos, sobre uma questão de princípios, não representa nem a minoria, nem todas as nuances da maioria; nada garante que ele compreenda ou não atraiçoará a vontade dos seus eleitores (…)”.

Outro dos perigos que ensombrava e ensombra a natureza da Democracia é a corrupção.

No seu estudo, Magalhães Lima diz: “A corrupção é o maior cancro dos governos populares; e, se não lhes é peculiar, encontra n’elles um terreno tão adequado que tem sido levantada às honras de systema politico”(…).” Erige-se a corrupção em systema politico, na descrença de todo o sentimento nobre e de todo o móbil d’acção que não seja um sórdido e insaciável egoísmo. Tão baixo desceu o nível moral das sociedades contemporâneas! 4 (…)”.

Para a melhoria da qualidade da Democracia, não devemos deixar que a única tarefa dos cidadãos ou dos membros de uma associação, seja ela profissional ou outra, se limite a ir às urnas de quando em quando, mesmo que regularmente, para eleger o governo e o processo de decisão seja confiado aos seus representantes.

Apenas para citar algo mais recente, recomendo a leitura de “The Economist” que, no Democracy Índex Mundial, relativo a 2008, revela que a democracia portuguesa está a perder qualidade, colocando-a agora no 25º lugar da tabela mundial. Segundo o articulista, o que poderá ter feito baixar esta avaliação da participação política foi a abstenção superior a 50% no referendo à despenalização do aborto.

Se analisarmos os actuais estatutos da Ordem dos Médicos, à luz da democracia representativa, constatamos que as minorias não têm voz activa nem participam nas suas deliberações. O comportamento da sua Direcção, como se pôde ver com a aprovação do Código Deontológico e da proposta de Carreiras Médicas, em que afastou os médicos do debate e das decisões, só contribuiu para o enorme desinteresse e alheamento da classe. O resultado é um aumento significativo da abstenção nos actos eleitorais, o que revela uma perda de qualidade democrática.

Está na moda, nos países desenvolvidos, a retórica do empowerment, que aponta para a necessidade de ouvir as pessoas e envolvê-las nos processos decisórios.
Fala-se muito na participação dos cidadãos, mas se esta participação não assume formas sólidas e minimamente organizadas, todos os grandes apelos ao empowerment não passarão de uma brincadeira.
As atitudes do Bastonário e do Presidente do Conselho Regional do Sul ao pressionarem membros da anterior Direcção do Colégio da Especialidade de Pediatria para este rever a sua decisão de não atribuição de idoneidade ao Serviço de Pediatria de Beja, são sinais evidentes de deficit democrático. Estas atitudes foram corroboradas pelo CNE, que resolveu atribuir a idoneidade formativa para Pediatria I ao referido serviço, ignorando o parecer técnico da Direcção do respectivo Colégio, o que originou a sua demissão.
A sobranceria e desrespeito por um parecer técnico de uma Direcção de um Colégio da Especialidade, escudando-se no seu poder decisório, desprestigia os Colégios e leva também ao desinteresse da maioria esmagadora da classe médica, que está patente na fraca participação nas votações para a eleição destes órgãos.
Os Colégios da Especialidade são a razão de ser da Ordem dos Médicos e as suas direcções eleitas devem ser o garante da qualidade técnico - científica dos serviços hospitalares, quer públicos quer privados, e uma das suas funções é a avaliação de idoneidade e capacidade formativas dos mesmos.

A eleição das Direcções dos Colégios pelos seus pares foi um acréscimo para a qualidade da Democracia na Ordem. Não deixemos que se regresse a um passado ainda recente. Não deixemos que voltem a ser nomeadas.

Bibliografia

1. P.Nunes , Boletim da Ordem dos Médicos, Ano 25 – Nº 103, Julho/ Agosto 2009

2. H.S.Maine, Essais sur le gouvernement populaire, E.Thorin, 1887

3. J.M.Lima, A Democracia, Estudo sobre o Governo Representativo, Tip. Silva Teixeira. Porto 1888

4. P.Ginsborg, A Democracia que não há, ed. Teorema, Agosto 2008

5. A.Costa, Fundamentos para uma Demissão, Acta Ped. Port.,Vol.40, Janeiro/Fevereiro 2009

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